Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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De Ryan Coogler a George Floyd, negros serão alvo de extermínio até quando

Detenção do cineasta diretor de 'Pantera Negra', nos Estados Unidos, é mais um episódio que escancara desigualdade racial

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"Até quando?" É uma pergunta que ainda hoje nos entala na garganta, como o pedaço seco de um intruso osso de galinha, aquele que a gente come às pressas, na hora do almoço, antes de pegar no segundo turno de trabalho.

É tão incômoda essa expressão, que, dia a dia, nos atravessa, expõe nossas vísceras em praça pública, ou no pelourinho da moral e do bom costume brasileiros. Nós, homens e mulheres negros, afrodescendentes ou negro-brasileiros e brasileiras, a maioria da população segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, os pretos e pardos, em resumo, somos cerca de 56% de toda a população.

A resposta a essa pergunta aí formulada parece simples, mas não é. Ela carrega uma dor profunda, incurável.

Movimentos de luta por direitos humanos e contra o racismo, como a Coalizão Negra por Direitos e a Frente Povo Sem Medo, fazem ato pedindo justiça no caso de Moïse Mugenyi Kabagambe, assassinado no Rio de Janeiro - Mathilde Missioneiro - 5.fev.22/Folhapress

Em um país que se arroga uma democracia racial, lema republicano de antanho, algo semelhante a uma letra constitucional, parece se esquecer do seu passado escravista, esteio da economia brasileira de três das nossas maiores e mais poderosas governanças: Reino, Colônia e Império.

Estou fazendo esta reflexão não por mero acaso. Ela me ocorreu depois que soube da detenção, nos Estados Unidos, em Atlanta, estado da Geórgia, do roteirista e cineasta Ryan Coogler, de 35 anos. Coogler esteve em um banco da cidade, o Bank of America, onde foi sacar US$ 12 mil de sua própria conta bancária. Ação simples, corriqueira, se não fosse por um detalhe —como Coogler é negro, e, portanto, suspeito de ser criminoso ou assaltante, ele foi preso.

Denunciado pela atendente e gerência do "banco da América", Coogler foi algemado e conduzido por policiais até uma viatura policial, que aguardava do lado de fora da agência. As cenas da prisão de Coogler, gravadas pelo circuito interno de segurança, são dignas de um filme de terror, muito longe das protagonizadas e dirigidas por Ryan Coogler, cheias de heroísmo e altivez, com forte impacto do protagonismo negro nas telas do cinema mundial.

Os diálogos do dia da prisão remetem a uma suspeição de que o cliente seja um potencial criminoso ou ladrão de banco. E tudo ficou evidente, na "cena" do crime, de acordo com os depoimentos prestados e o relatório produzido pela polícia local, porque Coogler pediu, através de umas linhas escritas num bilhete, discrição a uma mulher que o atendia no caixa. Ao confundir o pedido de discrição com a imagem do cliente, a mulher pediu auxílio ao seu chefe imediato e responsável pela agência, que resolveu acionar a polícia. Por pouco, Ryan Coogler não morreu por tiro ou asfixiamento, como é comum nos Estados Unidos.

Mas quem é Ryan Coogler nessa história?

Coogler é o celebrizado diretor do filme "Pantera Negra", ou seja, nada mais, nada menos que a segunda maior bilheteria de Hollywood de 2018, produção que conquistou diversas premiações, entre as mais importantes, três estatuetas do Oscar de 2019 –melhor figurino, melhor direção de arte e melhor trilha sonora, batendo concorrentes como "A Balada de Buster Scruggs", dos irmãos Coen, "A Favorita", de Yorgos Lanthimos, e "Duas Rainhas", da cineasta Josie Rourke, entre outros.

"Pantera Negra", estrelado pelo ator Chadwick Boseman, precocemente morto em 2020, só para ressaltar sua importância, deu a Ruth E. Carter o título de primeira mulher negra a vencer o Oscar de melhor figurino e igualmente a Hannah Bleecher, a conquista de melhor direção de arte. Ruth E. Carter, para se ter uma ideia, já havia sido indicada por "Malcolm X", de Spike Lee em 1992 e "Amistad", de Steven Spielberg em 1997. No dia da prisão, Coogler estava na cidade filmando a sequência do filme –"Wakanda Forever"– que mantém no elenco a brilhante Lupita Nyong’o.

Só o racismo explica como é possível que um homem negro com tanta projeção midiática possa ser tão invisível aos olhos de uma sociedade. No caso de Ryan Coogler, que contornou a situação entre o banco e a polícia com rara serenidade e compreensão, poderia ter sido pior. Por menos, foi asfixiado até a morte o trabalhador George Floyd em 2020, pelo policial Derek Chauvin, em Minneapolis, também por ser suspeito. A morte de Floyd turbinou o movimento Black Lives Matter –ou vidas negras importam, em português.

Essa mesma suspeição pesa como uma gargalheira sobre o pescoço e a epiderme de negros e negras no Brasil de hoje. Rodrigo Leandro de Moura, mestre e doutor em economia pela Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista veiculada pelo site Geledes, em 2017, já alertava que o que explica o elevado número de 80% das causas de morte de negros no Brasil é o racismo. Ele diz ainda, com base em dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, que "o número de negros assassinados no Brasil é 132% maior do que o de brancos", o que revela uma disparidade aterradora e monstruosa. É o que leva ao luto diário entre as famílias negras.

Não faz muito, vocês lembram, um "suspeito" também foi morto —Durval Teófilo Filho, por ação de um policial, no próprio condomínio onde morava, no bairro de Colubandê, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Durval Filho foi "confundido" com assaltante, quando chegava na portaria de casa e alvejado por tiros, sem qualquer chance de defesa.

São inúmeros os casos e exemplos de mortes por suspeição criminosa no Brasil, e a cada dia esses números só aumentam. Além das mortes —na maioria das vezes paira a ideia de crime racial, já que as vítimas são homens pretos—, há muitos incidentes racistas em lojas, restaurantes, shoppings, escolas públicas e privadas, aeroportos e demais áreas de convivência, que deveriam ser de uso comum, já que supostamente todos são iguais perante a lei e pagam os mesmos impostos.

O Brasil é por essência um país racialmente violento, sem dúvida. Esse cenário está longe de modificar-se. Ele é uma das características relevantes do "racismo estrutural", como bem dito e assinalado pelo colega e colunista desta Folha, o professor Silvio Almeida.

Quando não são mortos ou discriminados publicamente, sob as mais variadas tipologias de ofensas raciais e discriminatórias, homens negros são maciçamente encarcerados. A população carcerária do país é da ordem de 750 mil presos, sendo a maioria delas de homens negros, que vivem em celas superlotadas, em condições insalubres, em presídios dominados por facções criminosas e, acima de tudo, sob a vista grossa do Estado brasileiro.

É urgente que o racismo seja tratado como doença epidêmica nacional, com vistas à cura dos seus doentes e para pararmos de perpetrar o luto e a dor no âmbito das famílias negras. Na última segunda (21), transcorreu o Dia Internacional de Luta Contra a Discriminação Racial, uma data instituída pela Organização das Nações Unidas, a ONU, que lembra o massacre de Sharteville, de 1960, durante o apartheid na África do Sul. Através dela, recordo algumas falas de Nelson Mandela, quando diz que ninguém "nasce odiando outra pessoa pela pele ou religião. Pessoas são ensinadas a odiar". Mas também faz lembrar Emicida, que reverbera, na música "Esmália", a existência da "pele alva e pele alvo".

É um dilema pensar nessas poderosas palavras e voltar a perguntar, como fiz no início deste artigo: "Até quando?". Sim, até quando o alvo do extermínio racial vai ser a pele alvo. Sigamos.

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