Está preocupante viver no Brasil, com tanta radicalização, tanta tendenciosidade, tanto ódio, tanta violência física e moral, tanta miséria, tanta idiotice, tanta destruição ambiental, tantos assédios sexuais e tantos atos racistas, como tem sido frequente nos estádios.
Há também coisas boas. Na quarta-feira, a Folha publicou uma ótima entrevista com o neurocientista Stuart Firestein, ex-presidente do departamento de Ciências Biológicas da Universidade de Columbia (EUA). Ele é autor do livro provocativo "Ignorância, como ela Impulsiona a Ciência", sobre as dores e as incertezas do mundo científico e a desconexão que existe entre o ensino e a percepção da ciência.
Isso me faz lembrar dos meus tempos de aluno, médico e professor de medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Percebia que muitos pacientes, mesmo os mais instruídos, imaginavam a medicina como uma ciência exata, sem dúvidas e incertezas.
Com o progressivo desenvolvimento da ciência esportiva e dos minuciosos detalhes estratégicos, em detrimento da técnica e da inventividade dos atletas, ocorre algo parecido com os torcedores, os dirigentes e os analistas. Condutas rotineiras dos treinadores passaram a ser superelogiadas nas vitórias e bastante criticadas nas derrotas, como se o jogo fosse decidido quase somente por suas condutas. No futuro, os jogadores poderão se transformar em robôs, em avatares, dirigidos pelos donos do espetáculo.
Evidentemente, para conseguir um bom desempenho, a estratégia coletiva e o talento individual se completam. Porém a atuação nem sempre corresponde ao resultado, já que a bola entra também por acaso.
O talento individual, importantíssimo e decisivo, é a união da habilidade com a técnica, a inventividade, a lucidez para tomar as decisões corretas, as boas condições físicas e emocionais e o jogo coletivo. O craque precisa do conjunto para brilhar, mas, sem craques, não se forma um grande time.
Na inesquecível conquista da Copa de 2002, Felipão formou um bom conjunto, especialmente a partir das oitavas de final, mas o Brasil só brilhou porque tinha três grandes craques no ataque, Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho, além dos dois melhores laterais do mundo, Cafu e Roberto Carlos. Os outros eram também muito bons.
Os muitos gols marcados pelo Palmeiras, por bolas cruzadas na área, são resultado do bom posicionamento dos jogadores, sob a orientação do treinador, e, principalmente, da enorme qualidade individual dos cobradores e dos cabeceadores. Contra o Cerro Porteño, foram mais dois gols de bolas cruzadas. Scarpa, mais uma vez, mostrou exuberante técnica nos cruzamentos.
Segundo os neurocientistas, muitos jogadores possuem uma inteligência espacial, uma capacidade de calcular e de observar a movimentação e a velocidade dos companheiros e da bola. Para a psicanálise, seria o saber inconsciente, que antecede o pensamento, uma comunicação analógica. Pelé, antes de a bola chegar, dizia a mim, com os olhos esbugalhados e com os movimentos do corpo, tudo o que faria. Eu tentava acompanhá-lo.
Muitas coisas que ocorrem no campo não são programadas nem têm explicação. "Os que têm estudo explicam a claridade e a treva, dão aulas sobre os astros e o firmamento, mas nada compreendem do universo e da existência, pois, bem distinto do explicar é o compreender, e quase sempre os dois caminham separados." (João Ubaldo Ribeiro – "O Albatroz Azul")
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