Úrsula Passos

Repórter da Ilustrada, coordena o Clube de Leitura Folha e o Encontro de Leituras, parceria do jornal com o português Público, e é mestre em filosofia pela USP.

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Úrsula Passos

Humana e feminista, Simone Biles vai fazer o que ela quiser

Ginasta disse não e demoliu exigência de que, para crescermos e termos destaque, nós, mulheres, precisamos ser fortes

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Celebramos nesta quinta (29) a medalha de Rebeca Andrade, guarulhense prata no individual geral da ginástica com excelente desempenho nos quatro aparelhos em que se apresentou.

Porém, no Brasil ou em qualquer outro país, dificilmente algum outro acontecimento nos dez dias que restam de Jogos Olímpicos poderá ofuscar aquele que está destinado a ser o assunto maior desta edição de Tóquio: a desistência de Simone Biles.

A ginasta americana era a atleta de 2021, a cara das Olimpíadas, assim como haviam sido, em outros anos, Michael Phelps e Usain Bolt. Todos esperavam suas apresentações perfeitas. Gênio, monstro, extraterrestre, são esses alguns dos termos que usamos para nos referirmos a esses atletas. Ou seja, diferentes, distantes, extraordinários.

Super-humanos? Inumanos? Biles pôs a bola no chão e mostrou que tem seus limites. Foi capaz de expor sua humanidade ao mundo ao dizer, em entrevista coletiva, que “há vida além da ginástica”.

É necessário admitir, é claro, que não é qualquer um que faz o que Biles faz. Uma das coisas que mais nos atrai a ficarmos acordados horas a fio diante da televisão para assistir às Olimpíadas é justamente a beleza daquilo que não conseguimos reproduzir. A beleza do difícil executado com ar de facilidade.

Em Kant, o gênio é aquele que produz o belo artístico, que deve se parecer com a natureza. Parece uma viagem pensar no filósofo alemão agora, mas é no que penso quando vejo corpos girando no ar. Parece tão fácil. Parece natural. Mas é a beleza da superação.

A superação, porém, não cai do céu e não vem como uma graça ao nascermos. Não há gênios, extraterrestres (ao menos não nas Olimpíadas, no caso) e monstros. Aquilo que parece fantástico nas apresentações se dá graças a muito trabalho.

O atleta tem no esporte a sua profissão. Mas, assim como acontece com os artistas —músicos, pintores, atores—, temos dificuldades de tratá-los como os profissionais que são e reconhecer no resultado do que vemos um trabalho. E, como em muitas outras profissões, há estresse, exigências e cobranças além do saudável, há a saturação. Como em muitas profissões, há também a falta de reconhecimento e a intolerância ao erro.

Quando Biles diz que há vida além da ginástica, lembramo-nos de que há vida além do trabalho, embora nossa sociedade do cansaço, como a chama o filósofo Byung-chul Han, nos faça acreditar que a vida se resuma a ele.

Além de mostrar tudo isso, Biles, e também Naomi Osaka, demole ainda a exigência de que, para crescermos e termos destaque, nós, mulheres, precisamos ser fortes.

Constantemente diminuídas e frequentemente ameaçadas e violentadas —Biles está entre as ginastas estupradas por Larry Nassar, médico e abusador da equipe americana—, as mulheres na esfera pública precisamos ser casca grossa, precisamos nos impor, precisamos esconder nossas fragilidades. Precisamos falar mais alto e subir mais alto para sermos vistas e ouvidas, para sermos levadas a sério.

É exigido das mulheres que cuidem de todos ao seu redor, de maridos, de colegas, de filhos, de idosos. É a chamada economia do cuidado, série de atividades não remuneradas executadas, em sua maioria, por mulheres e que faz a roda da sociedade girar. Exige-se de nós, ainda, que sejamos doces e gentis. Sorria e acene. Faça o que se espera de você.

Biles disse não. Biles vai fazer o que ela quiser. Biles foi corajosa, foi humana e foi feminista. Afinal, o feminismo é a ideia radical de que mulheres são seres humanos.

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