Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Marias dão o nome e o suor para existirem num mundo que as rejeita

Quem as vê do canto da pia ouvindo rádio talvez não se dê conta de que elas têm suas próprias casas para cuidar

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Toda vila tem suas Marias. Nome comum, mas que reúne vários perfis –até as mulheres que não se chamam assim, mas que carregam as peculiaridades das Marias.

Não há dúvidas que sem Maria não há endereço, comunidade, bairro, família. Legado. Nas lutas do dia a dia, são elas, as muitas Marias, que dão o nome, o sangue e o suor para existirem num mundo que ainda não é feito para bem recebê-las. Então, Maria se faz em caminhos, diversos, inclusive, para chegar onde seu nome de fato cabe sem se preocupar. E quantas já não encontramos por aí?

Às 4h da manhã, banho tomado e cabelo preso, troca o gosto do sono pelo do café cheio de açúcar. Olha para as panelas, o almoço já está ali. Mais ao lado, sua marmita que a faz sonhar com o meio do expediente, quando faltará apenas a outra metade para voltar a esta mesma cozinha, cansada, sem ser derrotada por mais um dia.

Maria parte e deixa um pouco de si com os filhos, no pedido de proteção feito aos santos, nos recados repetidos para que não sejam esquecidos, no medo e na saudade. A outra metade de Maria bate o cartão da condução antes mesmo de pôr sua bolsa no chão e começar a cuidar da casa dos outros.

Quem a vê do canto da pia ou do tanque ouvindo o seu rádio não imagina que a mente de Maria ferveu durante as três horas de viagem até o trabalho. Talvez nem se dê conta de que ela tem sua própria casa –mas não própria— para cuidar.

Sem falta, Maria sempre está lá, pronta, cansada e muitas vezes reduzida ao “Quarto de Despejo” da própria existência, guardando para si e para os seus o que tem de melhor: propósito. Às 18h da tarde, tudo o que ela quer é a família bem, seu bairro seguro e a água morna sobre os nervos à flor da pele a deixando em banho-Maria.

É de Maria que nascem as outras. A Maria benzedeira e a enfermeira, detentoras das curas conhecidas e desconhecidas. Há também as donas Marias, proprietárias de barracas de feira, mercadinhos, quitandas, bombonnières, lojas de botijão de gás, açougues e tantos outros estabelecimentos. Outras Marias que trabalham fora da região, mestras na arte de dobrar o tempo e manter a pontualidade, retirantes do cotidiano.

Tem Maria que não fala, só observa, desgostosa do que vê –outro lugar que não sua terra natal. As jovens Marias que se preparam para a vida logo cedo, num constante 4h da manhã que as enche de responsabilidades precoces. Ainda assim, não perdem o vigor característico de quem vê nas adversidades a chance de pôr em prática suas estratégias de sobrevivência.

Todas essas Marias amam, porque o amor, assim como as Marias, é uma palavra de muitas caras, tamanhos, cores, desgostos e anseios. Quando este mesmo amor a machuca, Maria se torna Penha e dá não apenas o nome, como também o número –180.

Marias são feitas de carne e osso, porém algumas delas também são feitas de papel. Cabe em Maria a Celie do sul estadunidense, no início do século 20, e sua luta contra abusos, as tantas perdas e o desejo do reencontro —nas páginas de “A Cor Púrpura”, de Alice Walker, há Maria.

Carolina de Jesus, também Maria, descreve as diversas formas que encontrou de sobreviver à miséria cotidiana. Macabéa, a Maria de Clarice Lispector, busca entender o porquê de se dizer sempre feliz sem necessariamente se sentir assim. Guardam em si as tantas Marias, mais do que carne e osso, mais até do que papel.

Pelos palcos, telas de tevê e cinemas, Marias couberam na Sabina de Ruth de Souza, no filme “Sinhá Moça”, de 1953; na difícil infância e vida adulta de Billie Holiday, a voz do blues; foi possível ver Maria na Raimunda de Penélope Cruz, em “Volver”; hoje é possível enxergar Maria na Lurdes de Regina Casé na novela "Amor de Mãe" ou na Natasha de Linn da Quebrada na série “Segunda Chamada”.

Sem precisar de registro na certidão de nascimento, esse nome atua como um título, um pronome de tratamento que expressa grandeza, sofrimento e luta. Maria Anita, Zilda, Lídia, Filomena, Delsa, Nilza, Nelci, Antônia, Virginia, Maronita, Valderez, Lúcia, Clara, José. Todos conhecem Maria. O mundo é uma Vila Maria.

Sozinhas, viram-se bem, mas não é segredo –e sim estratégia de sobrevivência– que elas andam melhor quando estão juntas. Então, Marias, vão, sim, com as outras.

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