Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Veny Santos
Descrição de chapéu África

Um quilombo não significa nem se limita à fuga de africanos escravizados

Assim como defendia Abdias Nascimento, essa experiência se refere à união, à solidariedade e à reorganização negra

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Para quem vem do centro, digamos, da cidade, não tem erro —só se não quiser acertar. Toma-se o trem da CPTM no sentido Calmon Viana, ou Estudantes, região de Mogi das Cruzes, até a estação Jardim Helena-Vila Mara. Itaim Paulista também serve.

Depois, basta pegar o ônibus Jardim São Martinho, 3004, e pedir para o cobrador avisar quando estiver próximo da antiga rua Manima, atual Manuel Corrêa Penteado, no Jardim Pantanal, distrito do Jardim Helena, divisa com a Vila Seabra.

E que fique bem firmado neste início do texto: é preciso saber chegar.

Foi esse o caminho feito, há três anos, por uma organização autônoma de jovens negros —da qual fiz parte— rumo a um pedaço de África nesta diáspora. O compromisso era realizar atividades culturais e educativas para jovens da comunidade que, sem surpresa alguma de nossa parte, eram também produtores de conhecimento, estrategistas. Tinham espírito de comunidade, respeito pelos mais velhos e senso crítico.

Em uma das ocasiões, houve uma exibição do filme “Pantera Negra”, da Marvel, com confecção da máscara do herói e das demais máscaras africanas que apareceram no filme, além da satisfação de ver crianças negras se identificando com T’Challa —personagem de Chadwick Boseman.

Já em outro momento, foi a vez de levar brincadeiras originalmente africanas que resultaram numa gincana, acompanhada de teatro de bonecos, poesia em slam e show de rap. Ali, naquele espaço cedido por dona Conceição —uma garagem de aproximadamente 4,5 metros quadrados—, via-se nas paredes um mapa com os países africanos, grafites, versos, instrumentos musicais, estante com livros de autores negros e autoras negras, memória, identidade e legado.

Tinha nome aquele lugar. Melhor dizendo, ainda tem, Kilombo Kebrada.

Engana-se, entretanto, quem chegou até aqui apegado às palavras como se estas, de fato, fossem somente a celebração da resistência de culturas africanas fora do continente. Não.

Fruto da OCA, um coletivo nascido nos anos 2000, incialmente com foco nos estudos e ações direcionados aos povos afro-indígenas, o Kilombo Kebrada —fazendo jus ao seu nome— se torna ponto de referência para a população em geral, porém majoritariamente negra, na região que, apesar de se situar em uma APA (Área de Proteção Ambiental), carece de cuidados básicos e luta —cotidianamente— para não sucumbir a enchentes, pouco acesso à saúde e ao transporte e abandono social.

Para a comunidade da ocupação na Manima, Kilombo é o centro. Nele, essas pessoas são finalmente o foco de suas existências e narrativas. À margem estão os outros, que mal sabem da existência de tal lugar.

Robert Imani Umoja Kuumba é um dos integrantes da organização autônoma. Com uma seriedade acolhedora, daquelas que em silêncio traz conforto, sabe conduzir as palavras em forma de poesia e dizer o que precisa ser dito.

Quando fala do Kilombo Kebrada, ele demonstra o equilíbrio entre a firmeza do compromisso e a suavidade do propósito —que é ver seu povo prosperar por conta própria. Conta sobre os saraus, sambas, shows de rap, funk, oficinas de fotografia, culinária, dança afro, estamparia e todas as tantas atividades desenvolvidas no local como forma de cultura e estratégia de sobrevivência.

A juventude assume, ali, as demandas. Por vezes, liga o microfone e faz suas reivindicações nos mais diversos formatos. Em outras, apenas se reúne para conversar, aprender, aquilombar.

Infelizmente, Robert também lembra que o período da pandemia paralisou as atividades do Kilombo. Para manter a segurança, todos permanecem isolados em suas casas, e o grupo realiza ajudas pontuais —como entrega de alimentos— na medida do possível, porque fora do Jardim Pantanal estão praticamente sozinhos.

Abdias Nascimento, um dos maiores intelectuais deste país, tratou —nos seus escritos pan-africanistas— daquilo que chamou de “quilombismo”. Ao considerar as experiências vividas pelo povo negro em diáspora, o criador do Teatro Experimental do Negro foi enfático ao dizer que quilombo não significa nem se limita à fuga de africanos escravizados. Está para além disso. Refere-se à união, à solidariedade, a uma capacidade de se reagrupar para, então, reorganizar-se. “Ujamaaísmo da tradição africana”, escreveu o autor.

Hoje, o Kilombo Kebrada e tantos outros que permanecem confirmam a teoria de Abdias. Não basta chegar a tais lugares para cumprir tabela —como pontua Robert ao lembrar de algumas das visitas recebidas—, há de se entender o que foi dito no início. Há de se entender o que precisa ser feito, como precisa ser feito, tudo a partir da perspectiva de quem já faz: as comunidades mestras na arte de sobreviver. Os caminhos foram traçados.

Agora, é preciso saber chegar.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.