Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Guedes precisa entender que filhos de porteiros têm muito mais que fazer

Os infelizes episódios envolvendo o atual ministro da Economia nos lembram a obra do sociólogo americano W. E. B. Du Bois

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O incômodo é um sintoma. Físico ou psicológico, é um sintoma. Ele sinaliza o desconforto com algo que aparenta estar fora de seu devido lugar ou função.

De tempos em tempos, se expressa na sociedade por meio de indivíduos descontentes e, recentemente —sem nenhuma novidade—, mais uma vez empregadas, filhos de porteiros e pessoas que dependem do sistema público de saúde foram citados como sintomas de um retrato social inconveniente, insustentável e anormal.

Aquele que reforça sua insatisfação com o progresso, digamos, das camadas mais pobres da sociedade não só carece de capacidade cognitiva como também desconhece —ou finge desconhecer— quanto custa, para essas camadas, conquistar alguma melhoria na vida.

Sem tempo para perder tentando pôr um pouco de civilidade em mentes voluntariamente opacas e bestializadas, nós, o incômodo dos outros, focamos nossos objetivos para que estes se tornem caminhos, perspectivas e estratégias de real ascensão.

Os infelizes episódios envolvendo o atual ministro da Economia, que recentemente criticou o Fies, Fundo de Financiamento Estudantil, me fizeram lembrar dois nomes: Josie e John, ambos citados pelo sociólogo americano W. E. B. Du Bois em seu livro “As Almas da Gente Negra”. Os casos aqui destacados revelam duas faces da mesma moeda quando se pensa no que é progredir para aqueles que tiveram praticamente tudo tirado deles.

De um lado, uma aluna, do outro um professor. Os dois caminhando ao encontro de um destino melhor do que o traçado pelo racismo e de encontro às ações daqueles que perpetuavam tal violência —os racistas.

Enquanto rememorava suas experiências como docente, Du Bois descreveu o perfil de seus alunos, de suas famílias, de suas casas e de seus sonhos —até chegar ao momento em que, finalmente, comentava sobre o desfecho de alguns deles.

A obra também demonstrou a dificuldade dos professores negros dedicados a lecionar para crianças e jovens de sua raça no contexto de segregação. Uma das pessoas mais citadas foi Josie, preta, que trabalhava duro na casa em que vivia, próxima à escola.

Josie tinha sede por conhecimento. Junto dos irmãos, foi uma das primeiras a chegar à escola quando ela foi inaugurada. No capítulo, Du Bois disse que Josie era o "centro de sua família", porque não só trabalhava como também mediava as discussões e ajudava na educação dos mais novos. Pouco antes do final do capítulo ela teve sua morte anunciada: de tristeza e trabalho incessante.

homem negro de terno com bigode pontudo
O sociólogo e ativista americano W.E.B. Du Bois em foto sem data - Divulgação

John, por sua vez, vivia numa cidadezinha bem dividida. De um lado, a família e toda a comunidade que lotava igrejas, comércios e campos. Do outro, os demais habitantes que detinham as terras, o monopólio do comércio e a autoridade. John foi o primeiro dos seus a sair do local em que nasceu para estudar fora.

Quem também saiu da cidade pelo mesmo motivo foi outro John, branco, filho do juiz que comandava o lugar.

Ao saber que o primeiro John estava de partida, seu orgulhoso pai torceu o nariz e disse que o jovem negro encontraria a própria ruína ao deixar seu lugar de origem. Foram-se ambos os Johns.

Após concluir seus estudos, John retornou à comunidade, diferente, mais quieto, frio, não tão conectado àquela realidade, mas totalmente ciente de como ela estava destorcida pela desigualdade racial. Sem titubear, decidiu articular os conhecimentos adquiridos em prol de sua gente. Foi até o juiz e pediu permissão para abrir uma escola.

O magistrado, pai do outro John, disse que até tinha apreço pelo negro, mas que ele precisava aceitar o seu lugar e parar com aquela ideia de igualdade, e que o conhecimento adquirido no norte deveria ser usado para ensinar seus pares a serem leais trabalhadores, apenas. John, centrado no seu objetivo, não desistiu do pedido, e a escola foi aberta.

Pouco tempo depois, o John que era filho do juiz descobriu que seu homônimo estava lecionando sobre a Revolução Francesa e os princípios de liberdade e igualdade. Contou ao pai que, de imediato, mandou fechar a escola. O John negro foi demitido e seus alunos voltaram para casa.

Os dois fragmentos da obra de Du Bois são, até hoje, a realidade de quem luta cotidianamente por algum progresso, por assim dizer. Não é novidade, não é algo surpreendente, pelo contrário.

O racismo, seguido do preconceito de classe, revela o quão primitivo é o pensamento em relação à ascensão das camadas mais pobres do país, majoritariamente negras.

A questão é que tanto Josie quanto John não tinham tempo para perder com gente miúda. Fizeram o máximo possível para conseguir o mínimo cabível.

O desconforto com o progresso do povo preto e pobre não é problema nosso. Então, se toda semana mais alguém decidir se incomodar com este mínimo conquistado por quem praticamente nada tem, não restará —a nós, os filhos e filhas de empregadas e porteiros— muito a dizer senão o óbvio: temos mais que fazer. Muito mais.

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