Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Veny Santos

O que fazer com tanta raiva quando matam negros antes mesmo de eles nascerem?

Viver é direito básico, e não deveríamos ter que negociar isso, como se a vida tivesse preço

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Matam-nos no futuro. Antes mesmo de nascer, morremos. Física e simbolicamente, o parto é, deveras, um adeus à possibilidade de se viver plenamente a geração que deveria nos receber como a mais nova chance de recomeço. Não, o que nos espera é o adeus. Talvez esta seja a primeira palavra que aprendemos sem precisar dizê-la: adeus. Partimos.

Durante a última semana, como se fosse mancha de bolor corroendo todos os pensamentos que tive —em casa, no trabalho, nas poucas conversas com poucos amigos, nos minutos antes de dormir, no interlúdio de um sonho para outro pesadelo, naqueles instantes confusos após acordar—, a frase permaneceu.

“Matam-nos no futuro.” Jovem negra, grávida, é assassinada, atingida por uma bala cujo disparo não foi com a intenção de deixar viver, mas sim de fazer morrer. Partiram mãe e o amanhã. Mataram o futuro no presente. Kathlen Romeu, presente, a criança, futuro.

Por dentro, toda dor parece se espalhar pelo corpo. Dói o estômago que gela a ponto de queimar a si mesmo. Doem os pulmões que, no momento em que se traga a notícia, aceleram a respiração, mas depois se cansam e parecem prestes a não prestar mais. Um descompasso que, na falta de ritmo, tira-nos o ar.

No peito, a pressão semelhante à de socos no chão que tentam, de alguma forma, reivindicar o que não se pode mais ter. Socamos, socamos, pedimos, praguejamos, urramos de dor, e nada acontece.

No solo debaixo da caixa torácica, soca de raiva e tristeza o coração exaurido. Não conseguimos mais distinguir se é soco ou tentativa de cavar a terra e encontrar, nela, algum vestígio da filha, neta, namorada, amiga, do presente e do futuro contidos em um corpo só. Desespero.

Por fora, o que resta? Pouco. Nenhuma vontade de conversar, explicar, suplicar, reivindicar mais o mínimo, o pouco. Vencem-nos pelo cansaço. Em muitas batalhas, é assim que nos subjugam —pelo esgotamento.

Entretanto —e tanto mesmo—, continuamos. De repente, esta é uma de nossas defesas mais eficazes: sobreviver. Ainda assim, está longe de ser a condição que buscamos.

Viver é direito básico, e não deveríamos ter que negociar como se isso tivesse preço ou como se alguém pudesse precificar a vida.

Há, dentro do cansaço, diferentes silêncios. Aquele que cala por achar as perguntas estúpidas, como “mas o que posso fazer para ajudar?”, ou causa mudez pelo ódio que, de tão intenso quanto o amor, faz com que as palavras fiquem presas na garganta, feito nós.

É preciso lembrar que não temos todas as respostas, ainda que sintamos ter levantado todas as questões. Certas vezes, ficamos quietos e quietas porque é dentro de nós que toda mudança começa.

Os sons da fúria, indignação, zanga, os barulhos todos, os ruídos, estes são ouvidos somente por nós —o povo que ainda morre no futuro— como trovões distantes de uma tempestade que se aproxima. Nós, na garganta.

Quando olhamos para nossa gente, vemos o quanto aguentamos para chegar a lugares que continuam sendo lugar nenhum. São estes os tais “espaços” cuja construção foi feita por mãos pretas, mas o planejamento contemplava as de outra cor. Estar ou não em tais lugares nada tem a ver com nossas capacidades.

Pelo contrário, geralmente são espaços pequenos demais para caber nossas grandezas. Limitam-nos com medo de pegarmos seus postos, mas não é de nossa ancestralidade a chancela de expropriadores. De fato, não nos cabe.

Ao nos observarmos enquanto povo, não há como negar: matam-nos no futuro. Será a próxima vítima uma de minhas amigas, de minhas irmãs? E se for eu? Certeza que será um de nós —e esta certeza é de matar.

Muitas perguntas, poucas respostas, porém consigo ver na organização de nossa própria gente melhores saídas do que a eterna presença na fila de caridade, digamos, dos que ainda nos ceifam.

Temos pensamentos diversos, críticas e autocríticas, com as solas dos pés cobertas por poeira dos mais variados legados, mas o propósito precisa se manter igual: o fim de nosso genocídio. Um só caminho.

Lembro-me de que ao ler “Da Próxima Vez, o Fogo”, de James Baldwin, os textos causaram angústia por não saber o que fazer com tanta raiva.

Baldwin escreveu sem saber ele que, hoje, no futuro que ainda não me matou, eu ouviria no silêncio de suas palavras os trovões do porvir.

“Se, pelo contrário, não ousarmos enfrentar tudo nessa tentativa desesperada, sobre nossas cabeças estará pendente o cumprimento daquela profecia da Bíblia, recriada em hino por um escravo: ‘Deus forneceu a Noé o sinal do arco-íris: não mais água —da próxima vez, o fogo!’.”

O trecho também convocava pessoas brancas para o combate ao racismo, mas aqui resgatarei outra citação do escritor para lembrar de dois pontos importantes: “Eu não posso acreditar no que você diz porque eu vejo o que você faz!”. Matam-nos no futuro.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.