Acordava cedo, comia um prato de fubá com leite bem ralo ou pão com mortadela frita, tomava banho, penteava o cabelo para o lado, o enchia de gel para que os fios grossos não fugissem e, então, pegava minha mochila e a pasta com os livros.
Era 1998, eu tinha 11 anos e estudava na única escola municipal da Vila União, zona leste de São Paulo. Estava na quarta série, e já fazia tempo desde que havia começado a descer sozinho para a aula. Eu ia caminhando, agoniado, sem saber o que poderia acontecer comigo naquele dia —25 de agosto, meu aniversário.
Cantariam parabéns? Para mim, seria o fim. Eu era muito tímido. Ainda que imaginasse mil cenários, jamais pensaria que naquela mesma data era lançado um de meus discos preferidos e que, algumas décadas adiante, levar-me-ia a conhecer a obra responsável por descrever, em muito, minha formação escolar. Eu não tinha ideia de que aquele dia prenunciava, de fato, a deseducação de Veny Santos.
Considerado um ícone dos anos 1990 e responsável por fazer de uma mulher negra a primeira a ganhar cinco categorias do Grammy na mesma noite, o álbum “The Miseducation of Lauryn Hill”, a deseducação de Lauryn Hill, foi a trilha de uma época. Suas faixas eram, para aqueles com quem a cantora procurou dialogar, conversas cotidianas.
No pano de fundo, interlúdios que, entre uma música e outra, narravam os trechos de uma aula na qual o professor decidiu chamar a atenção dos jovens presentes escrevendo na lousa: “love”, amor. Este era o tema a ser discutido. Lauryn Hill, por sua vez, faltou a aula neste dia.
Ao longo do disco, Ms. Hill, como é conhecida, canta as tantas questões que envolvem sua vida, sua formação e a de outras jovens negras e negros de sua época.
Seja o desafio de iniciar uma carreira, a gravidez no decorrer dela, ou todos os obstáculos postos no caminho de seus irmãos e irmãs, ela, ainda assim, seguia aprendendo mais do que era imposto pelo sistema. Mais do que isso: a cantora reconheceu o que foi imposto a ela.
“The Miseducation of Lauryn Hill” tornou-se o disco que ouço toda semana, e por ouvi-lo toda semana fui conduzido pela necessidade que o próprio álbum cria de buscar origens —fosse as dos problemas, sentimentos ou histórias de meu povo negro.
Enquanto lia a respeito da artista, descobri que o nome do disco é baseado no título de um clássico da literatura negra americana, escrito pelo, digamos, pai da história negra, Carter G. Woodson.
Publicado em 1933, “A Deseducação do Negro” reúne pensamentos críticos do autor acerca da educação formal voltada para pretos e pretas. Uma educação que, em sua percepção, foi projetada para manter as condições de exploração, opressão e estagnação dos filhos da África na diáspora americana.
Woodson pontua que o ensino deveria preparar o negro para a vida prática, profissional e política em uma sociedade condicionada pela tensão das relações raciais. “Educados”, segundo o autor, eram os negros que serviam, passivos, ao sistema branco. “Altamente educados”, os negros acadêmicos que criticavam tal sistema, mas se beneficiavam dele e não contribuíam para a ascensão dos “deseducados”, aqueles que, além de não conseguirem bom desempenho no ensino imposto pelos brancos, desfavoreciam a si mesmos e à raça, tornando-se inimigos de seus pares ao sabotarem quem conseguisse algum progresso.
Este, aliás, era o grande plano do projeto de deseducação do negro para o historiador: manter esse povo descrente de suas capacidades técnicas, distante, inclusive, do conhecimento sobre África. A escolha de Hill para o nome do disco não foi à toa. Ela, assim como eu, depois de ler a respeito de nossa deseducação, percebeu que pouco sabia sobre o saber —e que o que nos foi lecionado, em muito, não passou de um processo de colonização mental.
Enquanto descia agoniado para a aula, naquele 25 de agosto de 1998, eu não sabia o que a escola me reservaria. Não sabia que professoras chorariam por não conseguirem dar aula. Não sabia que alunos chorariam por serem chamados de burros. Não imaginava que seria ensinado a estudar “para não puxar carroça” —visão nada libertária das razões para se aprender.
Eu, naquele dia peculiar, não pensei no revólver sendo deixado sob a mesa do professor ou dos preservativos usados nas últimas cadeiras da sala quando já estivesse no ginásio, como então era chamado o segundo ciclo do ensino fundamental. Não sabia que gravidez também chegava para quem há pouco tinha nascido, nem que drogas, brigas, racismo, homofobia, ódio, amor, compaixão, medo, fome, abandono e alguma superação caberiam naquele prédio rodeado de árvores e pixos.
Soube, tempos depois, com a “A Deseducação do Negro”, “A Deseducação de Lauryn Hill” e a minha própria, qual pergunta eu deveria fazer: o que o sistema realmente queria me ensinar?
A resposta está no longo processo de reeducação de Veny Santos —e de outros tantos.
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