Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

'The Miseducation of Lauryn Hill' me despertou para a minha própria deseducação

O que foi ensinado a nós, negros, na escola, em muito não passou de um processo de colonização mental

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Acordava cedo, comia um prato de fubá com leite bem ralo ou pão com mortadela frita, tomava banho, penteava o cabelo para o lado, o enchia de gel para que os fios grossos não fugissem e, então, pegava minha mochila e a pasta com os livros.

Era 1998, eu tinha 11 anos e estudava na única escola municipal da Vila União, zona leste de São Paulo. Estava na quarta série, e já fazia tempo desde que havia começado a descer sozinho para a aula. Eu ia caminhando, agoniado, sem saber o que poderia acontecer comigo naquele dia —25 de agosto, meu aniversário.

Cantariam parabéns? Para mim, seria o fim. Eu era muito tímido. Ainda que imaginasse mil cenários, jamais pensaria que naquela mesma data era lançado um de meus discos preferidos e que, algumas décadas adiante, ​levar-me-ia a conhecer a obra responsável por descrever, em muito, minha formação escolar. Eu não tinha ideia de que aquele dia prenunciava, de fato, a deseducação de Veny Santos.

Considerado um ícone dos anos 1990 e ​responsável por fazer de uma mulher negra a primeira a ganhar cinco categorias do Grammy na mesma noite, o álbum “The Miseducation of Lauryn Hill”, a deseducação de Lauryn Hill, foi a trilha de uma época. Suas faixas eram, para aqueles com quem a cantora procurou dialogar, conversas cotidianas.

capa de disco
'The Miseducation of Lauryn Hill', disco da cantora americana Lauryn Hill que faturou cinco prêmios Grammy em 1999 e fez dela a primeira artista negra a receber um troféu do evento - Reprodução

No pano de fundo, interlúdios que, entre uma música e outra, narravam os trechos de uma aula na qual o professor decidiu chamar a atenção dos jovens presentes escrevendo na lousa: “love”, amor. Este era o tema a ser discutido. Lauryn Hill, por sua vez, faltou a aula neste dia.

Ao longo do disco, Ms. Hill, como é conhecida, canta as tantas questões que envolvem sua vida, sua formação e a de outras jovens negras e negros de sua época.

Seja o desafio de iniciar uma carreira, a gravidez no decorrer dela, ou todos os obstáculos postos no caminho de seus irmãos e irmãs, ela, ainda assim, seguia aprendendo mais do que era imposto pelo sistema. Mais do que isso: a cantora reconheceu o que foi imposto a ela.

“The Miseducation of Lauryn Hill” tornou-se o disco que ouço toda semana, e por ouvi-lo toda semana fui conduzido pela necessidade que o próprio álbum cria de buscar origens —fosse as dos problemas, sentimentos ou histórias de meu povo negro.

Enquanto lia a respeito da artista, descobri que o nome do disco é baseado no título de um clássico da literatura negra americana, escrito pelo, digamos, pai da história negra, Carter G. Woodson.

Publicado em 1933, “​​A Deseducação do Negro” reúne pensamentos críticos do autor acerca da educação formal voltada para pretos e pretas. Uma educação que, em sua percepção, foi projetada para manter as condições de exploração, opressão e estagnação dos filhos da África na diáspora americana.

Woodson pontua que o ensino deveria preparar o negro para a vida prática, profissional e política em uma sociedade condicionada pela tensão das relações raciais. “Educados”, segundo o autor, eram os negros que serviam, passivos, ao sistema branco. “Altamente educados”, os negros acadêmicos que criticavam tal sistema, mas se beneficiavam dele e não contribuíam para a ascensão dos “deseducados”, aqueles que, além de não conseguirem bom desempenho no ensino imposto pelos brancos, desfavoreciam a si mesmos e à raça, tornando-se inimigos de seus pares ao sabotarem quem conseguisse algum progresso.

Este, aliás, era o grande plano do projeto de deseducação do negro para o historiador: manter esse povo descrente de suas capacidades técnicas, distante, inclusive, do conhecimento sobre África. A escolha de Hill para o nome do disco não foi à toa. Ela, assim como eu, depois de ler a respeito de nossa deseducação, percebeu que pouco sabia sobre o saber —e que o que nos foi lecionado, em muito, não passou de um processo de colonização mental.

Enquanto descia agoniado para a aula, naquele 25 de agosto de 1998, eu não sabia o que a escola me reservaria. Não sabia que professoras chorariam por não conseguirem dar aula. Não sabia que alunos chorariam por serem chamados de burros. Não imaginava que seria ensinado a estudar “para não puxar carroça” —visão nada libertária das razões para se aprender.

Eu, naquele dia peculiar, não pensei no revólver sendo deixado sob a mesa do professor ou dos preservativos usados nas últimas cadeiras da sala quando já estivesse no ginásio, como então era chamado o segundo ciclo do ensino fundamental. Não sabia que gravidez também chegava para quem há pouco tinha nascido, nem que drogas, brigas, racismo, homofobia, ódio, amor, compaixão, medo, fome, abandono e alguma superação caberiam naquele prédio rodeado de árvores e pixos.

Soube, tempos depois, com a “A Deseducação do Negro”, “A Deseducação de Lauryn Hill” e a minha própria, qual pergunta eu deveria fazer: o que o sistema realmente queria me ensinar?

A resposta está no longo processo de reeducação de Veny Santos —e de outros tantos.

Erramos: o texto foi alterado

O termo “ginásio” equivale ao que hoje é o segundo ciclo do ensino fundamental, e não ao ensino médio.

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