Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Enquanto pobres lutam para comer ossos, ricos têm medo de ficar menos ricos

'O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome', já alertava Carolina de Jesus

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Ano de 1958. São Paulo. Favela do Canindé. Dia 12 de julho. “Fui no frigorífico, ganhei uns ossos.” Dois de agosto. “Passei no frigorífico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros. Até eu digo que é para os cachorros...”

Quinze dias depois, “quando eu fui almoçar fiquei nervosa porque não tinha mistura”. No final do mês, “passei no frigorífico, ganhei ossos”. No começo do outro, "quando eu passava perto do frigorífico o caminhão de ossos estava estacionado". "Pedi uns ossos para o motorista. Ele deu-me um que escolho. Tinha muita gordura.” Um dia depois, "ontem comemos mal". "E hoje pior.”

Em 1959, mês de junho. “Hoje não temos nada para comer. Queria convidar meus filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive precisa comer.”

Ano de 2021. Cuiabá. Bairro CPA2. Dia 17 de julho. “Moradores de Cuiabá fazem fila para conseguir doações de restos de ossos de boi.”

No diário de Carolina de Jesus, publicado como “Quarto de Despejo”, ou na reportagem publicada por diversos jornais espalhados pelo país, a fome é personagem de destaque. Também foi em 2014, porém, em outro contexto. O Brasil deixava o mapa da fome.

Quatro anos depois, os primeiros sinais de retorno surgiam. Em 2020, então, ficou explícita a cadeira cativa entre as nações onde pobreza e extrema pobreza se tornam identidade nacional. Isso porque a "população pobre” é tratada como uma massa que carece de tudo: educação, saúde, comida, trabalho e dignidade. Tornam-se as pessoas suas próprias mazelas.

O pobre passa a não ser o brasileiro, o paulistano, o cuiabano. O pobre é, no máximo, bem marcado como preto. No imaginário dos outros, são sempre pretos —e, no mundo concreto, duro feito chão, também são os pretos aqueles que mais vivem a pobreza.

A fome de Carolina de Jesus e seus filhos, a mesma fome que era compartilhada entre os barracos da Canindé, persistiu. A notícia de Cuiabá, por sua vez, foi apenas um lembrete do que, nos cantos os quais ninguém vê, lê ou frequenta, nunca deixou de ocorrer.

Paralelamente à fome estão os fartos, os de barriga forrada, os que, mais do que poder escolher o que comer, podem escolher o que não comer —o que deixar no prato, jogar no lixo, dispensar ser ter nem tocado. São corados, preocupados com sua saúde, olham a tabela nutricional em rótulos e refletem sobre a dieta. Ossos? Para os cães —e olhe lá. Há rações caríssimas para os pets que funcionam bem melhor do que tutano. De repente, o que sobrou do ossobuco pode ser usado para coçar a gengiva do filhote comprado com atestado de pedigree.

Existem, também, aqueles que festejam suas picanhas de R$ 1.799, promovem churrascos com frequência e posam sempre sorrindo de bucho cheio.

Entre esta espécie, encontram-se aqueles tipos preocupados demais com a terrível possibilidade de empobrecerem —não de se tornarem pobres, óbvio, afinal, pobreza é identidade imposta aos tantos que sobrevivem à vida. Seu discurso, que tenta revelar preocupação com a tal massa faminta, além de burro, pragmaticamente falando, pois se fundamenta numa “impressão” distorcida da realidade, é medíocre. Revela, no máximo, o mínimo alcance da cognição tão rasa quanto a superfície dos milhares de pratos vazios que só se enchem quando aqueles pobres comedores de ossos limpam suas casas, aram suas terras, costuram suas roupas, criam seus filhos, lavam suas cuecas, dirigem seus carros, ou são socorridos por organizações e instituições que fazem as contas, todos os meses, para conferir se até o dia 30 conseguirão se manter na luta contra uma constante na equação nacional: a fome.

De onde venho, “osso”, enquanto expressão, significa algo difícil, duro, complexo, problemático. “Hoje o dia foi osso.”

Nos quartos de despejo espalhados pelas periferias, nas filas que viram esquinas de açougues, osso é o que sustenta a vida por um fio —aquela também difícil, dura, complexa e problemática. Comer o que tem para hoje, se tiver.

Dia após dia, no diário da fome, na desgraça documentada seja pela escrita, pelo ronco na barriga, ou ódio silencioso nos olhos de quem não suporta mais essa situação, há fome.

Não há, contudo, como eliminá-la enquanto são mantidos os privilégios dos fartos. É impossível sair do mapa da fome definitivamente se, definitivamente, quem come mais teme menos a fome. Pouco se importa com ela.

“Quarto de Despejo” é um aviso. Retrato da falta de comida como a base para a ausência de todo resto. Cresci ouvindo sobre a fome, por parte de mãe, pai, avó. Praticamente, uma parente distante que a qualquer momento poderia chegar bem na hora do almoço, sem avisar, e comer o que não existe. Só quem a conheceu sabe o quão osso ela é. Só quem a sentiu entende a importância de erradicá-la.

Carolina de Jesus alertou. “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças.”

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