Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Enem mais branco e elitista ameaça futuro da população negra e periférica

Será que ricos manterão seus títulos acadêmicos sem ter de dividir a sala com filho do porteiro?

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A mãe recebe as palavras com espanto que, nos próximos segundos, ao perceber que não se trata de notícia ruim, transforma-se em alegria. A voz trêmula acompanha também os olhos, já prestes a transbordar. “Parabéns, filho, você merece. Agora conseguirá arranjar um emprego bom no futuro.”

Foram anos e anos de luta para manter a educação, tanto quanto a comida no prato. Não havia, na família, quem tivesse rompido com os limites impostos pelas correntes do passado. Era a primeira vez, em todas as gerações, que alguém com sobrenome “de pobre” havia conseguido uma vaga no tão distante ensino superior.

Essa história, durante um curto tempo, foi comum entre os Santos e Silvas que conseguiram passar no vestibular e ingressar numa faculdade. Um retrato que nunca deve ser perdido de vista, ainda que o cenário seja drasticamente alterado —como foi atualmente.

O que se deve, também, é prestar atenção se essa vista não está embaçada demais pela forte emoção de conseguir ingressar na universidade, afinal, a empolgação sempre irá colidir com a realidade que a antecede. A frase da mãe, citada há pouco, deu a letra.

A realidade preta e à periferia dos centros privilegiados é outra. Não se visa diploma logo de cara, mas sim carteira assinada.

Quando o fato estampado nos jornais noticia que “Enem 2021 é o mais branco e elitista em mais de uma década”, a fita está dada —como costumamos dizer aqui na minha vila. Se para a população preta e nativa a faculdade lhes dava alguma melhoria no sustento para além de subempregos, falsos incentivos ao empreendedorismo e eterna condição de precariado, este foi o recado dado à educação nesta diáspora: ela é para poucos mesmo.

“Se a sua estratégia era estudar mais para conseguir ajudar financeiramente pais e parentes, desista dela”, avisam os que articulam planos para dificultar o acesso ao vestibular nacional em plena pandemia. Será que agora, finalmente, retorna para aqueles com sobrenome de rico a chance de manter suas tradições acadêmicas sem ter que dividir o espaço com filho de empregada e porteiro? O Exame Nacional do Ensino Médio, dentre tantas questões que apresenta, deixa esta bem clara, literalmente.

Tão importante quanto estar atento para essa visão não romantizada do ingresso à academia —ou limitada apenas a considerar o caráter emotivo da conquista de uma vaga— é entender o impacto da redução da chance, por parte da população preta, de conseguir algum sustento.

Não há inocência aqui a ponto de acreditar que fazer uma graduação é garantia de emprego. Evidentemente que não é, afinal, o número de formados e desempregados só cresceu nos últimos anos.

Trata-se, por outro lado, de perceber que, quando se fala em povos historicamente marginalizados e suas gerações de sobreviventes, o que se coloca em vista —esta sim, bem acurada— são: perspectivas. Se nos cegam diante das possiblidades de imaginar uma realidade diferente, como poderemos nos enxergar também diferentes e não apenas submetidos ao estado de constante desgraça que nos desumaniza? Primeiro nos tiram, depois atiram.

Aqui, nestas linhas, inexiste uma ode às faculdades. Toda a “beleza” da academia e seus títulos, toda a “magia” da formação e da formatura cabe no álbum de fotos de poucos.

Por trás dos sorrisos e becas há todo um universo composto por quem não respondeu chamada devido à falta de dinheiro da condução; devido à falta de tempo para conciliar entrevista de emprego e estudo; devido à falta de estrutura em casa; devido a tantas faltas que sua ausência se torna presença confirmada.

Não há aqui, nem de longe, a ideia do acesso ao ensino superior enquanto salvação única. Enquanto salvação alguma. O que se apresenta é prático, é pragmático: menos “acesso a” resulta em mais “acesso de” —menos acesso à educação e ao trabalho, mais acessos de conflitos sociais.

Antes mesmo de se iniciar o debate sobre outros aspectos de extrema relevância que estão relacionados com o fato da redução de pretos e pobres como candidatos do Enem —entre elas o epistemicídio óbvio que decorrerá deste cenário—, é preciso pegar a visão de que fazer faculdade é tentar correr pelo certo no intuito de conseguir um emprego que leve sustento e dignidade para dentro de casa.

A questão aqui outra é: se diminuem nossas perspectivas, quantas mais conseguiremos criar? Caberá aos Santos e Silvas responder, mais uma vez, fora do vestibular.

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