Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Veny Santos

Legado racista impede população negra de conhecer suas origens africanas

Romper a ligação do povo com sua história o insere na mais profunda vulnerabilidade existencial

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Enquanto olhava as próprias mãos, o rapaz tentava decifrar a si mesmo. De onde vinham os dedos tortos? E a pele escurecida? Finos e longos dedos que contrastavam com os grossos e curtos fios de cabelo. "Puxei pro pai." Por alguns instantes, sentiu-se dono de si, como quem sabe de onde veio. Um de seus amigos era de família italiana —o sobrenome entregava. A colega do serviço tinha não só a informação de em qual cidade de Portugal nasceram os seus parentes, como também arrastava no sotaque lusitano.

Era uma incerteza a menos na vida deles. Um desassossego a menos. Para o rapaz, a sensação que tinha era a de que o mundo sabia mais dele do que ele mesmo. "Preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, mestiço, cabra —ou qualquer outro eufemismo; e o que todo mundo compreende imediatamente, sem possibilidade de dúvidas, é que se trata de um home-de-cor, isto é, aquele assim chamado descendente de africanos escravizados", escreveu Abdias do Nascimento a ele, sem nem mesmo terem se conhecido.

A dificuldade que as populações negras nascidas nas diásporas têm de conhecer suas origens africanas sempre fez parte da estratégia colonizadora e de seu legado racista. Não há dúvidas quanto a isso, nem ao menos se faz novidade.

Romper a ligação do povo com sua própria história o põe na mais profunda vulnerabilidade existencial. Sem língua, sem nome, sem praticar espiritualidade, sem subjetividade, sem comunidade, sem memória, só corpo.

Depois do completo esvaziamento, os que sobreviviam a tal processo tinham, então, suas mentes subjugadas. Para o trabalho escravo só corpo bastava, mas para a escravidão enquanto sistema, não. Corpo e alma, no mínimo. O que se fez em seguida foi dizer aos tantos africanos e africanas quem eram e como deveriam ser, para quem deveriam rezar, a quem deveriam temer.

Hoje, o apagamento ainda se mantém. A ciência pode rastrear o DNA e descobrir, factualmente, de quais partes de África descendem as tantas vidas negras espalhadas pelo globo. O que ela não consegue, sozinha, é devolver o que aqui será o ponto de reflexão: a consciência. O saber sobre si e sobre o "nós" enquanto negros para além das violências sofridas na contemporaneidade racista.

Resgata-se nesta coluna algo que veio do continente, especificamente de Azânia, como uma das referências que apontam a importância da conscientização sobre as negritudes.

Pai começou trabalhando como policial até conseguir um emprego como funcionário do governo. Mãe era empregada doméstica. Ele, Stephen Bantu Biko, terceiro de quatro filhos, fruto de família pobre, não só se tornou uma das vozes mais estratégicas e combativas na luta contra o regime do apartheid, na África de Sul, durante as décadas de 1960 e 1970, como também fez de um conceito sua filosofia, política e base para organização de movimentos sociais: a "Consciência Negra".

Em 1971, Steve Biko escreveu "A Definição de Consciência Negra", texto para o curso de treinamento de liderança da SASO (South African Students' Organisation). Já no início, indica dois pontos que marcam a essência do conceito: ser negro não é uma questão de pigmentação —ser negro é o reflexo de uma atitude mental, e ao se declarar negro você inicia uma jornada rumo à emancipação e se compromete a lutar contra tudo e todos que usarem a sua negritude como estampa para marcá-lo como um ser subserviente.

Preciso, Biko chamou a atenção para a importância de se olhar e se entender como negro não mais —e apenas— a partir de definições externas. Estava mais do que na hora de olhar como um negro para a sua subjetividade, constituições psíquicas, ideológicas, para os seus valores e tudo aquilo que lhe conferia a humanidade que tanto tentavam exterminar. Somente assim conseguiriam —e conseguirão— os filhos e filhas do continente mãe, dentro e fora de seus braços, libertar suas mentes dos filhos e filhas de colonizadores que ainda insistem em seguir os passos racistas de seus antepassados.

A consciência negra de Steve Biko, no livro "Eu Escrevo o Que Eu Quero", chegou também às diásporas, nutriu organizações pretas, chamou a atenção para a importância de se olhar como preto também por dentro, e fortaleceu o interesse pela fundamental atitude libertária cujo objetivo final é libertação do negro. De corpo e alma, no mínimo.

Trazer Biko aqui, no mês em que esta diáspora data o Dia da Consciência Negra, também é lhe juntar a Aqualtune, Ganga Zumba, Zumbi, Malcolm X, Lumumba, a Toussaint L'Ouverture e tantos outros e outras que, por terem consciência do que é ser negro, não puderam morrer em uma cama confortável. Seus legados ensinam às diásporas que ser preto por fora é o primeiro passo para se compreender assim por dentro. A descendência também se faz assim.

Bantos, Nagôs, Jêjes, Ashantis, Malês, Zulus, Hauçás, Dagaras, Ibos, suas culturas e tradições, línguas, conhecimentos científicos, espiritualidades, civilizações inteiras correndo pelas veias de cada preto e preta nos quais a África —de ontem e de hoje— se faz presente dentro e fora. Ter consciência disso, para além de rastreios genéticos, é saber, finalmente, mais de si do que os outros acham saber.

Erramos: o texto foi alterado

Por um erro do colunista, o texto anterior que havia sido publicado nesse espaço, sobre dependência química, não era de autoria de Veny Santos, mas havia sido enviado a jornalistas pela assessoria de imprensa de uma clínica de reabilitação. O texto foi atualizado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.