Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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'Pobre de direita' quer segurança pública, não o genocídio do povo negro

Como explicar quem se proclama a favor do capitalismo e sofre para pagar, sem sucesso, todas as contas?

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Certa vez, durante uma aula de sociologia, nos últimos semestres do curso de ciências sociais, o professor comentou uma pesquisa que havia visto e que chamou a sua atenção.

O estudo abordado tinha sido feito em regiões periféricas da cidade de São Paulo e buscava apresentar como as populações pobres enxergavam diferentes aspectos políticos, sociais e culturais dentro e fora de suas comunidades. À época, faltava um ano para as eleições de 2018. O assunto, então, levou o professor a abordar uma caricatura consideravelmente popular no debate político: o "pobre de direita".

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O candidato a deputado estadual pelo PSL (Partido Social Liberal) nas eleições de 2018 e fundador do Direita SP, Douglas Garcia, jovem de direita que mora na favela de Americanópolis, periferia de São Paulo - Zanone Fraissat - 19.set.18/Folhapress

Era preciso entender esse sujeito e saber que ele também confirmava a existência da contradição e reacionarismo das regiões vulneráveis das metrópoles, pontuou o sociólogo. Como sustento de sua argumentação, trouxe o dado que, naquele momento, despertou-me a atenção não tanto pelo que demonstrava, mas pela forma como ele foi demonstrado à sala.

Disse ele: "A pesquisa mostrou que a maioria dos moradores de periferia era a favor da presença da polícia na região". Em seguida, pontuou que isso era um sinal de que não há pensamentos hegemônicos nas quebradas e que todos ali são progressistas ou não adotam discursos conservadores, "de direta", punitivistas e reacionários.

Até aí, nenhuma novidade, nada de extraordinário, talvez só demonstrou que pessoas desacostumadas com a vivência no meio do povo se surpreendem com aspectos comuns da diversidade de pensamentos e sensos de mundo nas comunidades. Entretanto, a interpretação feita pelo professor, e como ele a compartilhou, me tirou do silêncio sepulcral que eu geralmente mantinha enquanto estava prestando atenção nos discursos feitos em sala. Questionei-o.

Perguntei se ele teve acesso às questões aplicadas na pesquisa e ao relatório que descrevia a metodologia usada, assim como a apuração e a interpretação dos dados coletados. Reforcei que só fiz tal indagação porque queria entender se, objetivamente, a pesquisa demonstrou que, ao serem favoráveis à presença da polícia, as pessoas também apoiavam a violência policial decorrente de racismo e preconceito de classe em suas vilas, contra seus familiares.

"Não", disse-me o professor. Ele não teve acesso a tais detalhamentos. Prossegui com meu pensamento e expliquei que, na minha compreensão, o que se reivindicava ali era segurança pública, um direito de qualquer cidadão, e não o genocídio da população negra. A quem se chamava ali, na aula, de "pobre de direita" eram, na verdade, pessoas com demandas básicas que, infelizmente, ainda precisam recorrer às instituições —em grande parte falidas e corrompidas— do Estado. O professor concordou e mudou de assunto em seguida. Aqui, no caso, não mudo ainda.

Penso que 2022 é ano de eleição e, considerando os quatro anos de desgraça pura e inquestionável vividos nas mãos de mafiosos, seus jagunços e outras espécies da fauna do crime, não se trata de qualquer eleição. Em breve começarão as tantas nomenclaturas que tentam definir o eleitorado, muitas vezes ignorando suas nuances e complexidades. Ignorando, inclusive, os que não compactuam com este sistema político, mas atuam politicamente por vias autônomas, organizações comunitárias e frentes populares de mobilização e ação.

Buscam-se, também, culpados e inocentes, os que "não sabem votar", os que "votam como massa", quase sempre pretos e pobres, e também os que votam como "traidores" de sua própria condição —a de pretos e pobres.

Quatro anos e eu deixarei uma série de perguntas para reflexão: o que se compreendeu sobre as motivações daqueles vistos como "pobres de direita"? Quais são suas reais demandas? O que quer dizer o "pobre de direita" quando se proclama a favor do capitalismo e liberalismo e é explorado feito um condenado para pagar, sem sucesso, todas as contas? Qual mensagem passa a "pobre de direita" contra cotas raciais que nunca teve a chance de nem sequer prestar o vestibular? "Pobres de direita" são os que acreditam em meritocracia sabendo que precisam ser sempre duas, sete, dez vezes mais esforçados do que qualquer outra pessoa fora de sua realidade? E se for racista, homofóbico, machista? Na fila para pegar os ossos, tudo se dilui no retrato de um indivíduo: farto de política, com fome de comida. O pobre.

É justamente das lacunas, das ausências, das carências, dos desejos esburacados, da esperança sequestrada pelo dogma, do medo que pede por polícia mesmo com medo da polícia, que estão muitos discursos nem à direita, nem à esquerda, nem ao centro —mais a fundo, onde poucos conseguem acessar. São, sim, políticos, mesmo negando tal condição, mas ultrapassam estereótipos reducionistas.

Não adianta querer dialogar com o "pobre de direita" só quando é para virar voto, oferecendo café e bolo para chamar a atenção. O que lhes falta é tão diferente do que também falta ao "pobre de esquerda"?

Ano de eleição. Se as frentes ditas democráticas e progressistas não forem capazes de apresentar um projeto votável para quem chamam de "pobre de direita" e entender quais são suas demandas urgentes, passarão mais quatro anos culpando quem, no fundo, é apenas pobre.

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