Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos
Descrição de chapéu universidade África

Africanos ainda são vistos pela ótica estúpida de estereótipos racistas

Nesse cenário, Kabengele Munanga deve ser lido como combustível para inflamar as mentes do povo preto

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Não lembro exatamente como encontrei seu primeiro livro. Sei, por outro lado, que o que me levou até ele foi a agonia de não saber. Uma angústia particular que nos retira do mundo mesmo estando nele. Não saber é a condição do não ser. Vive-se sem perceber o que é vivido.

Kabengele Munanga. Do Congo para o Brasil, o antropólogo e professor universitário contribui para a reeducação do negro nesta diáspora. Desperta-nos para a noção de nós mesmos. Suas pesquisas, estudos, levantamentos e compromisso com o combate ao racismo compõem a epistemologia que resgata a população descendente da África do limbo em que foi lançada e que, aos olhos dos colonizadores e suas gerações seguintes, de lá jamais seria capaz de produzir qualquer tipo de conhecimento.

Limitados estão, esses algozes, à condição violenta e bestial dos que —na falta de capacidade de abstração da realidade e reflexão— agem pelo instinto oriundo de um medo cuja origem está nas gélidas florestas de uma Europa ainda sem sapiência.

Professor Kabengele Munanga - Egi Santana/Folhapress

Ao ler três obras do professor Munanga, pude entender um pouco do muito que ainda preciso aprender quando se trata do continente mãe e seus tantos filhos e filhas espalhados pelo mundo. Os livros são mais do que um caminho em direção à história, cultura, política, senso de mundo e estratégias de combate à supremacia branca.

Eles chamam a todos nós para a responsabilidade de não nos limitarmos apenas a decorar suas informações, mas também articulá-las no intuito de dar um passo adiante quanto às discussões propostas e, então, escrever novas páginas da ainda infinita luta antirracista. Aqui, citarei três publicações que deveriam ser aplicadas desde a educação básica até o ensino superior.

"Origens Africanas do Brasil Contemporâneo" começa, literalmente, situando-nos. As divisões geopolíticas da África são explicadas já de início para que se entenda sobre territorialidade e diversidade dos povos do continente. Um breve sopro de conhecimento básico que vai de encontro à estupidez eurocêntrica que ainda vê africanos pela ótica dos estereótipos racistas.

Línguas, biologias, culturas, tradição e modernidade são alguns dos elementos abordados. Ao longo das páginas, lê-se sobre aspectos históricos —como os grandes impérios e civilizações, até chegar à escravização e ao envio de africanos para o Brasil. Nesse ponto, Munanga resgata quais foram as etnias que aqui se estabeleceram e, após sobreviverem ao genocídio promovido pelo branco europeu, perpetuaram seus legados permitindo a formação social, cultural, econômica, religiosa e política à base de resistência e senso de comunidade.

Tratando da diáspora brasileira, especificamente, há na bibliografia do professor uma obra essencial. "Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional Versus Identidade Negra" foi o primeiro livro dele que li. À época, estudava justamente as relações raciais daqui e senti falta de um levantamento histórico que apresentasse as bases para se compreender o colorismo sem se limitar às discussões promovidas em redes sociais acerca do tema e que são, na maioria das vezes, fundamentadas em opiniões pessoais.

Ao partir do conceito de mestiçagem, o intelectual aborda características biológicas e também políticas acerca da mistura de raças, com o objetivo de compor uma linha do tempo capaz de invocar elementos como, por exemplo, doutrinas nórdicas e aspectos ideológicos. Quando inicia a abordagem do tema no contexto brasileiro, Munanga abre a análise enfocando a mestiçagem presente no pensamento da população.

Desse ponto em diante, diversos dados históricos permitem discutir raça, classe, mestiçagem como uma forma de extinguir a identidade negra e as políticas públicas ligadas ao tema. Não há como deixar de conhecer esse livro, assim como não há de se viver uma vida toda mantendo a angústia do não saber sobre nossas próprias origens.

Cito, por último, outro dos livros de Kabengele Munanga que chamam o leitor e a leitora para ação. Em "Negritude: Usos e Sentidos", os capítulos tratam do conceito ideológico a partir de suas variadas interpretações e contextos. Das sociedades coloniais às colonizadas, da tentativa do branco de fazer com que o negro se rendesse à assimilação de seus valores culturais e da resistência do negro diante de tal conduta.

Há abordagens que levam em conta a psicologia, a antropologia e os objetivos práticos da negritude. Outro ponto importante da publicação são as críticas que o autor apresenta sobre o conceito e que revelam tanto sua complexidade quanto as contradições. A negritude seria limitada apenas ao meio acadêmico? Ela foi e ainda é capaz de atingir as massas? Onde está sua originalidade? Será que ela conseguiu se livrar de influências eurocêntricas? É possível falar em uma real unidade dos povos negros? As questões levantadas são o chamado do professor para que seus alunos e alunas pensem nas respostas e, em seguida, sejam a respostas. Aprender para empreender em mudanças reais.

A produção de conhecimento promovida por Kabengele Munanga é o combustível para inflamar as mentes do povo preto e acender, mais uma vez, a chama do saber sobre si e sobre suas origens. Que ele seja lido em todos os territórios na diáspora onde a África se faz em cada pessoa que a carrega das mais diversas formas. Do Ermelino ao Grajaú, de Salvador a Água Fria, que se faça, assim —pelas vias do aprendizado—, o fim das angústias particulares.

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