Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Luto sem fim entre negros também é forma de extermínio da população

Nunca se sabe se algum 'desconfiado' irá encerrar o expediente a tiros, com a morte de mais um irmão ou irmã

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Hoje não vou trabalhar. Estou de luto, não consigo me concentrar. Há um azedume que toma conta do paladar insosso que mantenho só para conseguir comer algo. Não há opção de parar. Preciso levantar, continuar, sustentar minhas pernas, família, meus alicerces. Só que hoje não conseguirei trabalhar.

Não espero que você, patrão, entenda. Porém, sou homem de compromisso e, quando não consigo cumprir com algum, faço questão de assumir. Por esta razão lhe digo: hoje não vou trabalhar. Estou de luto. Quem morreu foi um irmão meu, nunca o conheci pessoalmente, não vivemos juntos. Ele morreu sozinho. Morreu um irmão meu e morre, todos os dias, outro irmão e outra irmã. Estou de luto hoje, chefe, porque mais um irmão foi assassinado.

Protesto pedindo justiça por Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, jovem congolês espancado e morto, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro - Tércio Teixeira - 5.jan.22/Folhapress

Hoje, e só por hoje, eu vou me permitir a ausência. Preciso me recolher e o que sobra de cada desgraça anunciada tentarei usar como forma de me recompor. Levantar, lavar o rosto e ir à luta. Eu volto amanhã porque preciso. Hoje não vou trabalhar.

No silêncio sepulcral da cabeça, este diálogo se faz por desespero, angústia, indignação e uma fagulha de força que tiramos não sabemos exatamente de onde para, enfim, continuar por mais uma semana, mês, ano, talvez, enquanto der para viver. Mas, quando um de nós morre, morremos também, em partes. Algum pedaço se vai: a esperança, o ânimo, o desejo, as perspectivas, a saúde mental. Morte que, há séculos, acompanha-nos sempre levando alguém por inteiro e todos por partes. Um a um ficamos para morrer pela metade.

Ainda assim, há de se manter no fio da navalha aquele que não morreu todo, caminhando, caminhando, segurando as poucas pontas que ainda restam dentro de si. O que sobra de alegria se esvai no chão seco e salgado como gota de uma chuva que, mesmo escassa, ao cair faz festa. É um dançar triste de pés descalços, mas que com música sentem o solo de outra maneira —menos duro, mais seu, um solo para as solas, que não agride e dá equilíbrio para o ritmo se traduzir em bailado. Um pingo de felicidade, só, é o que precisamos, às vezes, para não morrermos todos.

Custa demais permanecer assim. Como dívida de família, um parto já marcado pela cobrança do desacerto, nasce mais um para sofrer menos do que os seus ancestrais. A meta, na prática, é sofrer menos, nunca celebrar mais. Aprende-se desde cedo a fazer da pele armadura, da carne cama dura para mão nenhuma achar que pode repousar confortavelmente —e quente feito ferro— no rosto dos que se recusam a baixar a cabeça. Crianças que endurecem, amadurecem e adoecem. A realidade ainda deseduca assim.

Para sobreviver, morre-se, desde cedo, um bocado. Velório, enterro, noticiário, obituário, misturados, nas letras da manchete que cabem nas do boletim de ocorrência, que distorcem, confundem, mas nunca serão capazes de traduzir o que sente a mãe, o pai, a família daquele que será, provavelmente, tratado como mais um caso isolado.

A conta, custosa, segue sem alguém para pagar. Não há algemas para o sistema. Quando olho para as paredes esfareladas e mofadas da casa onde moro, quando vejo a luz do sol passando pelas telhas e desenhando o caminho que a água percorrerá quando o temporal cair, também olho para além da vista concreta, de cimento seco, e vejo irmãos e irmãs que nem isso têm mais. Perderam moradia, perderam uma vida toda dedicada a conseguir o mínimo. Há morte. Do corpo e da mente. Não amanhecerão, mas permanecerão ainda que lhes custe tudo. A cor da noite sobre suas peles continua a compor a maioria daqueles que morrem pelas condições precárias às quais são submetidos.

Fim do dia. Volta do trabalho. O mal-estar é completo. Vai das juntas ao céu da boca. "Será sempre assim?" "Toda semana uma notícia dessas?" "Como que faz para conseguir viver desse jeito?" O risco acompanha portão adentro. Nunca se sabe se algum "desconfiado" irá encerrar o expediente a tiros. A morte de mais um irmão, de mais uma irmã, nos dá vontade de parar por algum momento. O luto pede pelo nosso silêncio, recolhimento, acolhimento, mas não temos opção. É preciso fazer o que tem de ser feito.

Hoje eu vim trabalhar, mesmo de luto.

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