Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Descrição de chapéu tecnologia games

Fliperama de boteco levou os jogos às periferias antes da cultura gamer

Na quebrada, uma infinidade de estímulos chegou a mentes cuja afinidade para o surrealismo era habilidade desbloqueada

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A geografia dos botecos era conhecida. Quando entrávamos, tudo estava no mesmo lugar, sempre. Balcão, garrafas de cachaça nas prateleiras, ovos coloridos, batata em conserva, torresmo, salgado amanhecido, mesa de bilhar mais no centro, algumas mesas, o banheiro com cheiro de mijo e cerveja seca, pôsteres com mulheres de biquíni e uma televisão mais ao alto, incrustrada por gordura e poeira, há anos sem mudar de canal.

Os cantos, entretanto —um mais próximo da entrada e outro camuflado ao fundo, eram reservados para dois elementos cuja história muito se fez nas periferias de São Paulo. Escondido da polícia, mas em destaque para quem tinha moedas de 25 centavos nas mãos estava o caça-níquel.

Garoto observa partida de fliperama na Campus Party - Reinaldo Canato - 2.fev.2013/Folhapress

Na boca do bar, entretanto, a figura estranha fazia questão de se revelar aos olhos de quem passava por ali —a máquina de fliperama. Jogos, apostas e propostas diferentes que teriam, ao longo das décadas, destinos distintos. Para um, a ilegalidade, para outro toda uma cultura que, sim, deve muito às quebradas e seus jogadores.

Nos anos 1990, acesso a videogames nas regiões mais pobres da cidade só existia por meio de revistas como Games, Gamers e Game Power. Poucos eram aqueles que tinham um Atari —e se tinham, no mínimo se tratava de filho do dono de bar ou mercadinho, algo próximo do que seria um playboy de vila.

Entretanto, nem mesmo tais publicações eram tão fáceis de se adquirir. Para aqueles cuja prioridade sempre foi garantir o almoço, não havia chance de gastar com revistinha de jogo. Até Tele Sena tinha mais moral. Quando um comprava, todos liam. Páginas e mais páginas com fotos de jogos distantes, literalmente, da realidade daquelas crianças. Certo dia, porém, algo mudou e a ida no boteco não ficou só no fiado.

A máquina robusta estava lá, parada, pedindo para ser desvendada. Por ser alta, era necessário chamar o dono do local para ligá-la. A tela começava a clarear aos poucos, o "insert the coin" —insira a moeda, em inglês— piscava na mesma velocidade dos olhos curiosos tão vidrados quanto aquela misteriosa janela que se abria aos poucos e, então, eis que surge um homem forte, de faixa vermelha na cabeça, que move os braços mais para trás do corpo estranhamente.

Entre as palmas das mãos, concentra-se luz forte, azulada. Ele encara o menino e dispara uma rajada em sua direção. Um some, o outro fica. Por horas, por dias, para sempre, naquela cena de abertura de "Super Street Fighter 2".

O fliperama permitiu que troco de bala ganhasse uma nova função e que o imaginário daqueles meninos e meninas pudesse ser ampliado para mundos estranhos, com problemas novos que exigiam mais de suas mentes, mais de sua percepção e destreza, e menos dos seus joelhos e cotovelos ralados de asfalto.

Daí em diante, a expectativa residia em saber qual novo jogo estaria disponível nas máquinas. O balcão do boteco atendia não só os mais velhos. Agora, o dono precisava informar quando colocaria os "The King of Fighters" —95, 96, 97 e 98— "Cadillac and Dinosaurs", "Mortal Kombat", "Double Dragon", "Fatal Fury", "Metal Slug", "Sonic Wings", "Final Fight", "Marvel vs. Capcom", "X-Men vs. Street Fighter" e tantos outros títulos que passaram a integrar a rotina dos moleques.

Evidentemente que toda nova forma de sociabilidade traz, também, regras de convívio, conduta e poder.

Você não chegava do nada e colocava uma ficha para jogar contra quem já estivesse lutando. Fazer isso significava tiração do mais alto nível, ou seja, forma direta de desafiar a "honra" do outro. Perdi as contas de quantas vezes vi uma sequência de meia-lua para trás, meia-lua para frente e soco forte sair dos botões e passar para o corpo dos que começavam a se esmurrar por desavença de jogo.

Também havia aqueles que gostavam de assistir mais do que entrar na disputa. Pagavam ficha para ver outros avançando de estágio. Os silenciosos tinham uma concentração ímpar. Nada os abalava e, geralmente, conheciam todos os códigos que os permitiam desbloquear personagens secretos.

Eram eles, na verdade, os personagens secretos. Todos eles, no que hoje viria a ser "mundo do games", nasceram como personagens secretos na história desta cultura. Aqui, faço questão de desbloqueá-los, como Leona, Orochi e Iori tantas vezes foram.

Com a popularização dos consoles e avanço da pirataria, os primeiros donos de "Nintendinho" apareceram, e junto deles locadoras que viam o povo fazer fila nos finais de semana para conseguir reservar "Mega Man", "Looney Tunes B-Ball" e "Mario Kart".

Metade do dia era futebol na rua, outra metade era tirando contra em "International Superstar Soccer". As mães dando bronca para evitar o vício, os menores esperando sua vez de pegar no controle e apertar aleatoriamente os botões, os adolescentes sem paciência e os pais nem querendo saber o que acontecia ali. No máximo, interessavam-se por "Side Pocket".

Chega, então, a era do Playstation e Nintendo 64. "The Legend of Zelda", "Resident Evil", "Driver", "Grand Theft Auto", "Tony Hawk’s 2" —com a melhor trilha sonora, "Final Fantasy 7" e "Final Fantasy 8", "Metal Gear Solid", "Grandia", "Breath of Fire 4", Eddy Gordo —o capoeirista brasileiro e negro de "Tekken 3" que virou referência—, as lan houses e os timinhos de "Counter-Strike".

Enfim, uma infinidade de novos estímulos às mentes cuja afinidade para o surrealismo dos games era habilidade já desbloqueada. Tudo isso nos espaços pouco vistos —e pouco interessantes— paralelos a uma "cultura gamer" que, à época, já nascia com fita original que não precisava ser soprada para funcionar.

Quando encontro meus amigos daqui e de outras quebradas, revivemos estas histórias todas, sempre começando pelos fliperamas. Alguns deles frequentavam a Lords, tradicional pico de games no Tatuapé. Eles gostavam dos jogos de carro com simulador. Eu preferia a arte pixelizada de Top Gear.

Hoje, talvez, quem me vê na fila do pão não imagine que vivi esta "cultura gamer" dentro da cultura de boteco, na quebrada mesmo. Ainda que, atualmente, continue a jogar com certa frequência —desde a série "Souls" até "Genshin Impact"—, para sempre serei personagem secreto.

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