Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Veny Santos

Guerras entre nações e da vida cotidiana sempre dividiram a sociedade

Que os opostos sejam colocados nos seus devidos lugares e tratados a partir de suas intenções reais, sem dissimulações

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Um ciclo de ódio sem fim. Que sociedade se mantém desta forma? A história conta a respeito dos que não conseguiram sustentar seus impérios coléricos. Nações reduzidas a pó. Facínoras sendo consumidos por seu próprio fogo. Cinzas e mais cinzas. Hoje, este vórtice ganha mais corpo com os milhares de corpos que compõem o montante acumulado há séculos. Resultado do levante autoritário que faz da morte política de Estado. No fogo cruzado entre mentes bélicas, as balas não fazem curva. Retas. Morre o povo não só na guerra, mas em todas as esquinas nas quais a vida, um dia, fez-se possível.

Edifícios destruídos na cidade de Borodianka, na Ucrânia, devido à invasão russa sobre o país - Ivor Prickett/The New York Times

Longe ou perto o bastante para se sentir próximo dos que sofrem, o tempo e o espaço —mais relativos do que nunca— parecem e padecem, em certa medida, imutáveis. Nada melhora. A desgraça posta se acomoda e fica por semanas, meses, até anos. A presença indesejada é garantida por quem manda e desmanda na casa. A presença é política. Torna-se política. O vasto mundo, redondo mas com cantos, é uníssono quando se trata de apelo.

Das vielas às valas, porém, não se ouve mais nada. Um silêncio que diz tudo. Quais teorias serão lidas no velório? Quais pensadores irão sepultar o povo —por tantos anos seu objeto de estudo? Tão abjeto que é passível de ser descartado. A morte, uma certeza. O assassinato, a constante. A vida varia. O vórtice continua.

O jornal se abre, boceja e avisa: jovem é morto durante tiroteio, e família acusa polícia, comida está cara, guerra continua, pessoas em situação de rua são "varridas" do centro da cidade, mortes ocorrem por conta de enchentes, dois rapazes são presos injustamente por participação em crime que não cometeram, senador faz apologia à tortura sofrida por jornalista, políticos saúdam a ditadura militar, presidente ameaça dar golpe nas eleições.

Do prato ao Palácio do Planalto, da colherada vazia à "canetada" mais vazia ainda, tudo se torna política quando na política se cria a inércia proposital que inviabiliza melhora nas condições para existir. Certa estava minha avó, que dizia que no noticiário só se via desgraça. Ela só não me contou que se tratava do mundo real em que vivíamos e vivemos.

Faltam velas para as mães acenderem todos os dias ao verem seus filhos e filhas saírem para garantir o amanhã. Falta de tudo, muito. Aqui, o que se tem é uma série de perguntas mudas cujas respostas terão que ser dadas, cedo ou tarde. Não há como continuar da maneira que estamos por que assim nos obrigam a estar.

Dispensam-se os nomes, o fanatismo, a devoção cega, dispensa-se sem desconsiderar cada um e cada uma que, na quietude de seu momento mais íntimo, admitiu para si que erramos, falhamos, fomos enganados. Nunca estiveram longe dos que sofriam, dos que não vingaram na "meritocracia". Sentiram-se "elevados", quase no topo, quase na elite, até perceberem que não, não ascenderam. Estavam, ainda, na penumbra compartilhada com os outros —sempre os outros— de origem semelhante à sua, os pobres.

Não precisamos de conciliação forçada. O que se espera é consciência compartilhada. Que se prestem ao acerto, agora, aqueles e aquelas que não mais pretendem compor este cenário decadente como indivíduos indiferentes. No deboche cotidiano vindo do empresariado explorador ou da classe política mafiosa, são parecidos —estes "diferenciados"— com quem limpa suas casas, "tudo povo". O que lhes faz à parte da parte toda é a possibilidade de viverem por mais tempo em seu sonho médio, enquanto mulheres negras são mantidas em situação análoga à escravidão por 50 anos.

Editoriais e colunas insistem em constatar o presente óbvio como um porvir inevitável, uma fortuna devastadora que somente será combatida com aquele que talvez se apresente tal qual o "Príncipe" de Maquiavel. "Querem dividir a sociedade!", bradam uns. E quando não esteve dividida, ou melhor, cindida pela parcela que deseja o palácio, o planalto, o topo, o mais alto patamar dentro da estratificação social, a elite? A sociedade está dividida há séculos. A guerra, neste caso, é discursiva, retórica.

Enquanto se mantém o debate oco em torno de falácias do tipo "somos todos brasileiros, não existe divisão de classes", ou "vivemos numa democracia racial" nas esferas que mais deveriam contribuir para formação de uma opinião pública relevante, de fato, para o público, barrigas roncam e pouco importa se a chapa-branca do jornalismo brasileiro está feliz ou não, sente-se representada ou não.

Só quem está de bucho cheio se esbalda em discussões baldadas. É também nesta vacuidade semiótica, cuja produção de sentido seria a pura contraproducência na lógica da comunicação de massa, que se conduz a população ao ciclo de ódio sem fim.

Se há divisão, que no mínimo os lados opostos sejam postos nos seus devidos lugares e tratados a partir das suas ações e intenções reais. Não ficará difícil ver quem vinga na democracia e quem se vinga com fascismo. No fundo, todos sabem. Inexiste mais de um caminho no delírio fascistoide, afinal se manifesta como a ausência de direções, de perspectivas, de pluralidade.

Duro será, entretanto, admitir que o mundo é mais complexo do que os maniqueísmos reducionistas disfarçados de análises políticas. Também ocas, estas não vingam. Mais custoso ainda é traduzir o paradoxo da tolerância para a língua dos intolerantes, salvando-os, assim, de sua própria gramática colérica. Raivosos, estes sim se vingam. Quando converso com meus semelhantes, falamos de comida, de moradia, do medo, da angústia, de sobreviver. De várias guerras cotidianas. Há espaço para alguns momentos de distração e descontração, algum assunto que desvie do presente agulhado, mas não basta. Continua tudo ruim.

Se o desejo de tantos e tantas é o de viver num país melhor, mais justo, menos desigual, dispensa-se o convencimento para, então, buscar-se a convicção. Não há mais como se distrair tanto para aguentar tanto.

Que sociedade se mantém desta forma? Nenhuma.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.