Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Racismo cria injustiças ao atribuir 'cara de bandido' a negros inocentes

Como mostra Lima Barreto com a personagem Isaías Caminha, a cor da pele define quem é o autor do crime no Brasil

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Qual é a cara do crime? A "cara de bandido"? O que confessam, no rosto, os traços marcados? A que remetem? A quem?

Isaías Caminha, de Lima Barreto, sabia o porquê de o terem chamado para depor sobre um crime que não cometeu. "Mulatinho", referiu-se a ele o agente público quando insinuou qual seria o perfil do ladrão responsável por furto em um hotel. Sabiam, Isaías e Lima Barreto, quem e como definia a cara do crime.

O escritor Lima Barreto, autor de clássicos da literatura brasileira como 'Recordações do Escrivão Isaías Caminha', fotografado em 1919 no Hospital Psiquiátrico Pedro 2°, onde foi internado - Divulgação

Antes tivesse se limitado a um tempo passado tal preconceito. Antes, bem antes, tivesse ficado como retrato decadente de uma tentativa fracassada de civilização. Um vulto na história desta terra que, para negros, nunca foi natal, de fato. Hoje, o jornal aberto prova que a literatura é a práxis. A teoria, a fabulação, a abstração da realidade para, então, retratá-la nem sempre se findam nos contos. Antes, bem antes, assim fosse.

"Reconhecimento fotográfico leva à prisão 8 entre 10 réus absolvidos", leio nesta Folha. Penso, em seguida, entre tantos inocentes, o que levou a Justiça a cometer repetidas vezes o mesmo erro? "Ao todo, 242 processos foram analisados. Entre os 342 réus, 64% são negros e 96% são homens", informa o texto. Meu erro, no caso, é fazer perguntas retóricas na tentativa de obter resposta diferente da óbvia. Falho. A reportagem assinada por Ana Luiza Albuquerque expôs mais um retrato, o de quem retrata a criminalidade a partir de outro crime, o de racismo.

Há duas faces diante do mesmo espelho, a de quem condena e a do inocente condenado. Reforço —inocente condenado. Que fosse um, e não tantos, já bastaria para escancarar o olhar herdado de tempos em que a Guarda Real tinha como alvo negros e nativos jogados à miséria em decorrência da colonização. Negros e nativos como os únicos inimigos dos ditos civilizados. Negros e nativos enclausurados numa pintura em que os traços usados para desenhá-los os definiam como aqueles sempre sedentos por tirar dos bons homens o merecido fruto da espoliação. Naturalmente condenados.

Nos tempos modernos, um álbum de fotos cuja paleta de cores, no momento de apontar o dedo e escolher quem será o réu da vez, pouco importa ao colorismo. Do retinto ao mais claro, tem a marca que remete à origem. A pele escurecida, o cabelo crespo, cacheado, a grossura dos lábios, o tamanho do nariz, a lembrança do africano arrastado para cá, do preto de pele clara que não se verteu branco aos olhos dos brancos. Traços. Caminhos que levam a um rosto ao qual se impõe a ideia de ser o mesmo para todos e todas. É um rosto negro e basta.

Cabe, ele, então, no "álbum de suspeitos" cujo critério para compô-lo é tão vazio, tão opaco quanto a consistência dos elementos probatórios apresentados. Inverte-se a presunção de inocência. Exige-se a comprovação de que criminoso não é. Nada de novo para quem nasceu em território majoritariamente preto e se sente culpado, sempre, por algo que jamais cometeu —ou virá a cometer.

"Você está com cara de bandido nesta foto de perfil", ouvi certa vez no ambiente de trabalho. No flúmen de emoções que o momento causou, somente um desaguar foi possível. Questionei-me: "E se a polícia achar o mesmo quando eu estiver voltando para casa?". À época, eu chegava ao meu bairro tarde da noite, após assistir às aulas da faculdade. Um moletom se tira, um boné se tira, meu rosto, não. O tiro é certeiro. Era preciso transcorrer rápido pelas ruas da vila no caminho entre o ponto da lotação e o portão.

Bárbara Querino é modelo, dançarina e uma das vozes que combate o encarceramento em massa da população negra, fator que contribui diretamente para o genocídio de sua juventude. Foi vítima, em 2017, de um tipo de reconhecimento já conhecido, o cabelo dela era "igual" ao da suposta criminosa. Traços. Foi colocada em situação de cárcere até que, no ano de 2020, veio a absolvição, anulando todas as acusações.

Enviei uma carta a ela neste período em que lhe privaram a liberdade. "Vela", um texto sobre mães e seus filhos e filhas que vivem nas periferias. Sobre o medo cotidiano de ver seu legado ir e não saber se voltará. No domingo dedicado às matriarcas, questiono quantas não tiveram em tal data a ausência dos filhos a quem muitos atribuem "cara de bandido". "Fora de casa, nascemos e o que vem primeiro é o choro —o nosso. O da mãe, ela segura", dizia um dos trechos. Há equívocos que custam uma vida em vida.

Enquanto o sistema judicial não revir os critérios adotados por delegacias para compor o que chamam de "álbum de suspeitos", seguiremos com discriminações que criminalizam. Um erro que não é qualquer. Específico, ele sabe a quem prejudicar. Um erro com perfil conhecido.

Um erro com traços racistas.

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