Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu

Gestar, parir e ficar um tanto louca

A parturiente vê sair de seu corpo uma parte de si, experiência que cobra um preço do psiquismo

Barriga de grávida acariciada pela mãe
Barriga de grávida acariciada pela mãe - Eduardo Knapp/Folhapress

Aquela jovem sossegada, cuja maior preocupação era manter a chapinha do cabelo em dia, incapaz de gerir a arrumação do próprio quarto, acaba de ter bebê e você descobre uma fera irreconhecível que não deixa ninguém chegar perto do pimpolho? Aquela que não acordava no fim de semana antes das 11 da manhã, agora passa as noites com um olho aberto e outro fechado, pronta para pular no berço e verificar se o pequeno continua respirando, como se houvesse mágica conexão entre o olho dela e os pulmõezinhos da criatura? Até o maridinho —tão atônito quanto ela— está na lista de suspeitos de colocar a saúde do bebê em risco? Ela nem pensa em oferecer café para as visitas, mas já mencionou álcool gel cinco vezes? A sogra e/ou a mãe caíram em desgraça aos olhos dela e tornaram-se um risco iminente? Você pede para pegar o fofo no colo e ela faz uma cara de “como assim!?”?

Basicamente, ela está um tanto louca.

Winnicott (pediatra e psicanalista inglês) cunhou nos anos 1950 o conceito “preocupação materna primária” para tentar dar conta desse momento enlouquecido especial, uma vez que se trata de uma loucura fora da patologia, ou seja, não tratável e temporária.

Dentre os desafios da chegada de um bebê, gestar e parir têm suas peculiaridades. A parturiente vê sair de seu corpo uma parte de si mesma. Experiência disruptiva que cobra um preço do psiquismo materno e que não será vivida por pessoas nascidas do sexo masculino ou que não gestaram. Ao mesmo tempo em que pode estimular a identificação com a maternidade, é um complicador na hora de se separar do bebê que nasce. É como se as visitas estivessem pedindo para pegar no colo um pedaço do seu corpo que está fora de você. “Posso pegar seu coração no colo um pouquinho?” Levar para dar uma volta?” Haja álcool gel!

É uma experiência incompreensível para quem não passou —e ora vejam só!— quem passou geralmente se esquece (Winnicott também apostava que haveria um apagamento recorrente da loucura dessa fase).

Mas por que sofrem tanto essas mãezinhas recém-nascidas? Muito frequentemente por se sentirem fragilizadas, lidando com um mundo de perdas e adaptações e, na maior parte das vezes, por serem profundamente incompreendidas. É difícil mesmo para quem está de fora compreendê-las em seus excessos. Junte-se a isso o fato assustador de que em sua maioria são recém operadas —o pós-operatório é incompatível com a tarefa de cuidar de um bebê— e teremos sofrimentos desnecessários, 
por vezes, quadros mais graves.

Já do lado do bebê, com ou sem loucura materna, havendo um adulto com disposição para oferecer amor abnegado e dedicação física e moral ininterrupta, as coisas podem ir muito bem. Não existe grande vantagem no excesso de comoção a que chegam essas mães, por vezes francamente extenuante, mas cria-se uma vigilância que a evolução da espécie pode ter tentando garantir — embora o ser humano não seja tão obediente ao chamado da natureza quanto os demais seres vivos.

Enfim, cada pessoa terá que enfrentar o desafio da chegada de cada bebê —ele também com suas peculiaridades— a partir das condições disponíveis. Lembremos apenas que a mulher que pariu e está identificada com a maternidade tem, na separação entre corpos, a cereja do bolo.

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