Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu

Pelo ‘bem’ da criança, faz-se o pior

Ao estigmatizar a família e a criança, cria-se o sofrimento

Sou do tempo em que criança com síndrome de Down era mantida longe do olhar das visitas por constrangimento. Tempo em que não se cogitava que um down aprendesse a ler, a escrever, que namorasse ou que fizesse faculdade. Do tempo em que filhos de pais separados eram considerados crianças problema fadados à psicoterapia e que crianças “bastardas” e adotadas —em segredo, claro— carregavam enorme estigma social. 

A questão da síndrome é relevadora pois, como a genética não mudou, resta aí a prova de que não era o cromossomo que impedia os sujeitos de terem uma vida digna. 

Criança em  brinquedoteca, em Diadema
Criança em brinquedoteca, em Diadema - Adriano Vizoni/Folhapress

O que mudou? Mudou o olho com que os pais e a sociedade vêm essas crianças, mudou a aposta nelas. 

Infelizmente, também sou do tempo em que filhos de casais homoafetivos (e qualquer família fora do padrão imposto) são vistos como vítimas de pais pervertidos, cobaias do politicamente correto, sob ameaça iminente de abuso sexual e moral. 

Condena-se o futuro dessas crianças por meio de vários argumentos. Por exemplo, a interpretação de que essas crianças não seriam bem cuidadas por não terem acesso à “função” materna ou paterna, caso sejam criadas só por pais ou só por mães. Ideia baseada na crença de que as funções parentais (função de amar, de cuidar ostensivamente, de ensinar, de pôr limites...) dependem de se ter um pai e uma mãe. Ou seja, uma mãe solteira, um pai solteiro, outro parente ou profissionais de uma boa instituição não seriam capazes de criar decentemente um ser humano. Meia dúzia de biografias bastam para constatar a recorrência com que personagens históricos, mundialmente admirados, foram criados fora do padrão alardeado. 

Também prega-se a ideia de que filhos de casais homoafetivos são fruto de métodos heterodoxos de procriação. Ideia que faz supor que fomos concebidos em berço esplêndido —constrangedor. Seja gravidez planejada, camisinha estourada, ovo ou esperma doado, barriga de aluguel —entre outras circunstâncias mais ou menos elegantes— não há tipo de concepção que produza seres humano melhores ou piores. A questão continua sendo como sustentamos e lidamos com as histórias de cada um de nós. Histórias sempre vulgares, diga-se de passagem.

Faz-se ainda a suposição de que essas crianças não saberão o que é um homem ou uma mulher, por terem dois pais ou duas mães. Como se ao ser filho de duas mulheres, por exemplo, a criança fosse abduzida para a ilha da Mulher Maravilha, onde não existem avôs, tios, amigos, enfim, homens! 

E a cereja do bolo: que elas estariam fadadas a se tornarem homoafetivas devido a influência dos pais. Essa é a mais bizarra, pois basta apontar que casais heterossexuais têm filhos gays, para entender que a orientação sexual não depende da orientação ou da vontade dos pais. 

O pai ou mãe homoafetivo de hoje é tão perigoso para seus filhos, quanto era a “mulher desquitada” dos anos 1950. 

Famílias inadequadas existem aos montes, mas se ilude quem as define pelos critérios acima. 

Em nome do “bem” da criança, despreza-se diferentes famílias e, ao fazê-lo, cria-se a situação que se supõe estar denunciando. Ou seja, ao estigmatizar a família e a criança, engendra-se o sofrimento que se supõe vir da condição original delas. 

Sou desse tempo. Qual será o tempo de nossos filhos?

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