Já faz 20 anos que eu crio duas branquelas. Nada mal quando se vive num país de brancos. Circulamos entre espelhos o tempo todo. Os âncoras de jornais são brancos, as capas de revista são brancas, as top models são brancas, a gigantesca parede de brinquedos é de bonecas brancas, os colegas da escola e os professores são brancos, políticos, atores e atrizes também. É claro que temos a cota racial. Um negro (servindo), um oriental (um tanto deslocado) —e, talvez, um índio?— aqui e acolá.
Nossa pele clara, nosso cabelo liso, nossos olhos claros. Como somos lindas!
E eis que minha filha chega do cinema radiante, depois de assistir "Pantera Negra" —filme que está dando margem a um movimento político de autoafirmação dos negros estadunidenses. Independentemente da história mirabolante e quase sempre patética dos "blockbusters" do gênero, o filme é um marco: consegue, sem falar de escravidão ou da condição racial, colocar o negro como protagonista de uma história de super-heróis. Questão política de quem vem ocupar seu lugar sem ter que pedir licença. Dentro disso, a estética faz sua marca: os cabelos, os tons de pele, a derme grossa sem defeitos (a celulite tão conhecida da mulher branca), as roupas, lábios, músculos. A beleza é negra! Só faltou dizer, maldito DNA de branco!
Crio, já faz 20 anos, duas branquelas e antes disso fui eu mesma criada entre brancos —num país majoritariamente negro (pode apedrejar)-- onde um filme como esse não era pensável e nem as cotas existiam.
Invertamos a fita. Como seria tê-las criado com âncoras de jornais negros, capas de revista negras, top models negras, a gigantesca parede de brinquedos de bonecas negras, colegas da escola e os professores negros, políticos, atores e atrizes também? Sim, a beleza seria negra. E sairíamos correndo a encrespar os cabelos, colocar turbantes, torrar no sol (não para parecer que temos acesso a férias num iate, mas em busca da cor certa), aumentaríamos os beiços e alargaríamos o nariz com cirurgias plásticas. Desde que o mundo é mundo, virtudes e vícios são associadas à raça, à condição social e ao gênero —associação repetida à exaustão a cada oportunidade que apareça. Em "Pantera Negra" a virtude, a paixão, o sexo, o poder, a inteligência, a força, a ética, a maternidade, a honra é negra, invertendo o lugar recorrentemente associado às pessoas brancas.
Também fica evidente no filme o lugar da mulher na fictícia e idílica Wakanda, onde se passa a história: a guarda real é feminina e as protagonistas femininas não são secundárias. Bingo outra vez.
Lembramos que o filme não é brasileiro. Porque para realizar tal aposta, há que se ter mais do que uma forte indústria cinematográfica. Há que se admitir que a questão racial está encoberta pela cordialidade e pelo mito da miscigenação espontânea brasileira. Povo mestiço e feliz que estaria sendo envenenado pela ideia de racismo. Teremos que ser super-heróis para encarar e lidar com nossos problemas históricos e sociais?
Quando vemos jovens negros brasileiros paulatinamente assumindo sua beleza, seus cabelos, traços, história e costumes, estamos apenas presenciando uma moda entre outras ou estamos vendo mudar o eixo de nosso velho mundo em nova direção? Façam suas apostas.
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