Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu

Desespero com protestos pode revelar terrível dificuldade de ser cidadão

Ele corre ao mercado e finge ignorar que o outro fica desabastecido por sua causa

Sem tempo para refeições decentemente degustadas, horas de sono devidamente dormidas, boas conversas postas em dia e outras alegrias adultas, seguimos correndo com a promessa de que ao final teremos a recompensa. Qual seja? Tempo para nós.

Mas eis que em nossa já habitual semana com agenda de super-heróis, aquela na qual assumimos tarefas impossíveis de darmos conta, acontece o impensável: o Brasil ameaça parar.

Vemos algumas reações de desespero diante da perspectiva de parar. Cabe lembrar que o que nos diferencia dos animais é nossa percepção do tempo. Deslizamos entre um passado cheio de frases como “se eu tivesse casado com fulano”, “se tivesse escolhido outra carreira...” e um futuro cheio de promessas de felicidade. Motor de ansiedade sem fim, a projeção de futuro no qual finalmente seremos felizes é repleta de frases como “quando eu tiver/for/fizer..., aí sim, serei feliz”.

Doença ou aposentadoria, por nos fazerem parar, podem nos obrigar a lidar com a ideia melancólica de satisfação perdida ou com a promessa de um futuro, geradora de terrível ansiedade. Obrigados a parar compulsoriamente, observamos o quanto de alívio e o quanto de desespero essa situação nos suscita. 

O adolescente que não puder ir à aula por falta de gasolina tem grande chance de agradecer aos empresários do transporte rodoviário pela graça alcançada.

Outros cidadãos podem se desesperar pela falta de mobilidade em situações nas quais a logística garante a vida, seja pela fonte de renda, seja por motivo de doença.

Não é o caso de subestimar o horror do desabastecimento, do desperdício de alimentos apodrecendo, da impossibilidade de se locomover em uma cidade já naturalmente intransitável, do impacto sobre hospitais, aeroportos em função de uma greve com grandes indícios de locaute. No entanto, o desespero que se apoderou de algumas pessoas pode revelar outras coisas. De um lado, nossa terrível dificuldade de ser cidadão. 

O sujeito que sai correndo para comprar quilos e quilos de alimento com medo de desabastecimento finge ignorar que seu vizinho ficará desabastecido também por sua causa. Dez quilos de arroz para um poderia ser um quilo para dez, mas talvez seja pedir demais... A própria percepção de que dependemos uns dos outros para fazer o país andar pode ser bem assustadora para quem se imagina protegido dos demais. Sem transporte, alimento e hospital ficamos assustadoramente perto da forma como vive grande parte da população, ainda que só na fantasia.

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