Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Parto e nascimento

Parto vaginal não é sinônimo de parto bacana, a menos que seja bem assistido

Enfermeiras seguram a mão da mãe na hora do nascimento em hospital do SUS
Enfermeiras seguram a mão da mãe na hora do nascimento em hospital do SUS - Gabriela Di Bella - 30.jun.16/ Folhapress

Minha mãe, grávida de nove meses do primeiro filho, ouvia meu tio cantar a cada vez que se encontravam: “As águas vão rolar”, sem entender que a música era uma piada com ela. Era um tempo em que pré-natal significava, no máximo, o dia 24 de dezembro, e não uma rotina de consultas e exames que antecedem o parto. Ao chegar na maternidade, viu-se sozinha, imobilizada na maca, com dores fortíssimas, até que sentiu o jorro de um líquido quente entre as pernas. Aterrorizada, começou a gritar em desespero que seu bebê estava morrendo, pois se esvaía em sangue! A enfermeira chegou furiosa, apenas para lhe dizer que se calasse, que ela era uma idiota atrapalhando a rotina do hospital, pois aquilo era a bolsa rompida —as águas que rolaram, afinal. Mulheres, que, como ela, tiveram partos vaginais desamparados, mal assistidos ou francamente violentos, não tardaram a almejar que as filhas tivessem um tratamento melhor. Nesse caso, a medicina traria a saída perfeita pela promessa de analgesia e, o suprassumo, a cirurgia cesariana. Limpo, rápido e fácil.

Do lado da medicina, quanto menos o parto fosse apenas um evento fisiológico e natural —passível de acontecer em casa—, mais se justificaria a cobrança de honorários. A cirurgia é um procedimento rentável porque implica intervenções devidamente remuneradas e porque o agendamento fez do parto um acontecimento (quase) previsível. Verdadeira linha de produção da fábrica-maternidade, com parturientes-máquina e bebês-produto, como nos alertou Robbie Davis-Floyd em “Birth as an American Rite of Passage”, já em 1992.

O casamento entre intimidação, desinformação, interesses financeiros, misoginia e racismo fez do Brasil o campeão mundial das cesarianas eletivas, cujas motivações raramente são salvar bebês e mães em risco. Conhecemos bem a banalização do diagnóstico de “sofrimento fetal”. Além disso, os riscos da cirurgia são ocultados e vende-se uma garantia que jamais existiu.

A versão dos bebês não é menos terrível e levamos algumas décadas para nos sensibilizar com o nascimento deles. Pendurar o recém-nascido pelos pés, enquanto se dá um bom tapa na bunda, era uma prática corriqueira e celebrada, que hoje soa bizarra. O curioso é que o mesmo bebê que, na sala de parto é recebido com as manipulações protocolares mais grotescas —aplicar colírio, aspirar, medir, pesar—, ato contínuo, é tratado pela família com toda a delicadeza e proteção que merece. Se o enxergássemos assim desde o primeiro momento...

Foi necessário que os pediatras se unissem para impedir o agendamento de cesarianas cada vez mais precoces —a produção sempre pode ser otimizada—, pois sobra para eles o cuidado com os desconfortos respiratórios, que se tornaram absolutamente corriqueiros (sem comentar sequelas piores das cirurgias desnecessárias). Sugiro os documentários “Nascendo no Brasil” (2001), de Cara Biasucci, verdadeira pílula de matrix, e o recém lançado “Renascimento do Parto” (Netflix).

O parto vaginal não é sinônimo de parto bacana, haja vista a violência disseminada nos hospitais. Parto bacana é aquele que é bem assistido, respeita as escolhas da mulher e suas possibilidades fisiológicas, ou seja, é o parto possível e desejável para cada mulher.

Não devemos, no entanto, encerrar prognósticos nefastos sobre mães e bebês em função de um parto ruim, mazela que atinge a maioria das mulheres hoje no Brasil, pois essa crença vem da suposição de que um bom parto garantiria algo da maternidade.

Cabe, no entanto, nos perguntarmos o que desejamos para nossas filhas e nossos bebês e nos mobilizarmos o quanto antes em função dessa resposta.

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