Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

A primeira psicanalista no clube

Freud falou da sexualidade no bebê, mas não bancou o ódio na maternidade

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A primeira mulher a ser aceita no grupo de psicanalistas capitaneado por Freud chamava-se Margarete Hilferding. Reunidos desde 1902 para discutir a teoria recém-criada, os arautos da psicanálise confabularam bastante antes de permitir que uma mulher (médica, é claro) entrasse no clube. Que o assunto "mulher" —seu desejo, sua histeria— ​ fosse onipresente na teoria psicanalítica, não foi justificativa suficiente para que uma mulher de carne osso participasse das reuniões. O fato se deu em 1910.

Um ano depois, Hilferding profere uma conferência, disponível no livro "As Bases do Amor Materno" (1991) de Teresa Pinheiro, na qual revela uma teoria incrivelmente atual. Margarete fala basicamente duas coisas: a primeira, é que o amor materno não é instintual e é ambivalente. A segunda, é que o parto é um evento erótico. Passados mais de cem anos, as duas afirmações ainda arrepiam a nuca de marmanjos e marmanjas. 

"Freud falou da sexualidade no bebê, mas não bancou o ódio na maternidade"
"Freud falou da sexualidade no bebê, mas não bancou o ódio na maternidade" - Pedro Ladeira - 13.abr.2017 /Folhapress

Quanto à primeira afirmação, Freud capitulou. Embora o criador da psicanálise fosse enfático ao afirmar a natureza ambivalente do amor em geral, ele fez uma ressalva: o amor materno seria o único livre de ambivalência. Principalmente, se for o amor da mãe por um filho homem. De uma tacada só o pai da psicanálise contrariou sua própria pesquisa sobre a natureza do amor e, ainda, colocou os meninos como o suprassumo da maternidade. Escorregada comoventemente ingênua, que não deixa de causar vergonha alheia. Homenagem maior do que essa à própria mãe e a si mesmo devem existir poucas. Conrad Stein, em as "Erínias de uma mãe: ensaio sobre o ódio" (1998) puxa a orelha do mestre vienense com boa dose de humor.

Se Freud foi o gênio capaz de falar da sexualidade no bebê, para horror da sociedade vitoriana de sua época, como não foi capaz de bancar o amor/ódio da mãe pelos filhos, tão facilmente observável? Mesmo depois de uma psicanalista, ela mesma sendo mãe, afirmá-lo com todas as letras? Em defesa de Freud, temos que reconhecer seu mérito em criar uma teoria, um método de pesquisa e uma forma de tratamento que se baseia na crítica perene de seus próprios pressupostos. Enfim, a psicanálise é maior do que os psicanalistas.

Mas por que será que capitulamos diante do ódio materno? Porque será tão duro reconhecer que o amor entre mãe e filhos é igual aos outros? Insistimos em acreditar que somos a última bolacha do pacote para o outro. Imaginar que esse outro, de quem dependemos integralmente nos primórdios, pode ter sentimentos mundanos por nós, é apavorante. Afinal, não poderíamos ter nos defendido, caso o ódio ultrapassasse o amor. Além disso, a mentalidade que começa na modernidade de que o amor é instintual dá lugar à idealização. A função principal de idealizar algo é varrer para debaixo do tapete tudo que escapar ao ideal. E sabemos como basta uma escorregadinha para que a poeira guardada empesteie o ambiente. 

Se você achou que esse tema indigesto, talvez prefira ignorar que Hilferding afirma, também, que o parto tem um caráter erótico, antecipando em quase um século a "descoberta" do erotismo na cena de parto.
A sexualidade no parto é como o nariz no rosto, tão próximo dos olhos que se torna invisível. Afinal, o parto é a culminação de um evento que começa com o ato sexual, se desenrola no corpo, que só perde seu caráter sexual quando morre. Convenientemente associado ora a um evento cirúrgico, ora sagrado, ora midiático, o parto foi ficando mais asséptico e menos privado. Mas esse assunto fica para a próxima. Enfim, as primeiras psicanalistas não estavam para brincadeira. Estaremos à sua altura?

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