Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Com o dedo em Hilst

É mais fácil imaginarmos o mundo sem oxigênio do que sem artistas

Imaginemos o mundo sem música, sem literatura, sem artes plásticas, sem arquitetura, sem design. Cada canção, quadro, dança, poema desaparecendo. É mais fácil imaginarmos logo o mundo sem oxigênio, pois não haveria humanidade. Ainda assim, o mesmo artista que torna o ar respirável, mantendo nosso espírito vivo, é um sujeito rechaçado socialmente. 

Nossa relação como apreciadores de arte e, ao mesmo tempo, execradores de artistas, é notória e deixa mortos e esfomeados pelo caminho. Para cada artista que tem padrão Globo de honorários —pouquíssimos— ​​ há uma legião de desempregados sazonais ou totais. É claro que a função transgressora da arte, que o artista deve promover para merecer o título, lhe dá uma condição marginal de saída. Mas é disso que se trata a arte, afinal: promover o pensamento, nos lembrar que somos sujeitos finitos e, portanto, fadados a nos solidarizarmos uns com os outros.

Hilda com seu gravador na Casa do Sol, década de 1970
Hilda com seu gravador na Casa do Sol, década de 1970 - Acervo pessoal/Instituto Hilda Hilst

Grande exemplo da nossa controversa relação com a arte é a genial poeta Hilda Hilst, que volta à baila como homenageada da Flip. Depois de anos de produção de poesia e prosa pouco lidas e peças teatrais não encenadas, Hilda envereda pelo que ela mesma chamou em tom provocativo de "pornografia". Cria como personagem principal uma menina de oito anos explorada sexualmente, com o sugestivo nome de Lori Lamby. 

Ode à pedofilia? Só para quem não sabe ler. De uma forma radical e com pleno domínio sobre sua arte, a escritora compara a falência e desespero do pai de Lori, escritor ignorado pelas editoras, com a facilidade com que a menina faz dinheiro. Hilst dirá que o livro é "uma banana para o mercado editorial". O dinheiro que viria fácil para a "pornografia", falta para o poeta. 

"O Caderno Rosa de Lori Lamby" (1990) é de um humor que nos pega na curva, escatológico. Embora tenha sofrido duras críticas quando de seu lançamento, a tetralogia obscena de Hilst não chegou a colocar em risco sua integridade física, como vimos em alguns episódios recentes em museus e exposições. Ler sua obra hoje nos faz perceber a caretice e a falta de visão atuais. A autora denuncia, de uma só tacada, o puritanismo, o mau gosto, o pouco caso e a misoginia do mercado editorial brasileiro. 

Em sua entrevista de 1990 à TV Cultura, na qual demonstra imensa desenvoltura, ela solta a frase: "Você não pode pensar em português, (...) em português os editores te cospem na cara", entre outras pérolas. 

O filme de Gabriela Greeb a ser lançado em breve, que mescla encenação e documentário, talvez nos traga outras pistas sobre a autora. Mas Hilda vai muito além da polêmica que ela mesma alimentava ao construir uma prosa que nos aproxima das questões centrais da pífia e angustiada existência humana. 

"Estar sendo, ter sido" (1997), considerado seu livro-testamento, tem no título verdadeira tese. Nele, a autora continua a nos empurrar sem dó para as questões da velhice, da morte, do obsceno, de Deus, da loucura, para depois nos deixar à deriva, lidando com a falta de sentido que insistimos em disfarçar. No final, com sorte, teremos a poesia.

Ter Hilda Hilst sob os holofotes novamente vai além da chance de aproximá-la de um público que mal teria conhecimento de sua obra —maior sonho da autora em toda sua vida. Seu estilo de vida avesso às convenções, sua escrita transgressiva, a capacidade de ser fiel a sua arte, o rigor de seu trabalho incansável e o desafio de ser mulher no meio artístico podem servir de inspiração a outros artistas. Um espaço público no qual a arte e o artista são celebrados com o respeito que merecem vem a calhar nesse período de caça às bruxas. 

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