Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Dia seguinte

As últimas semanas foram de angústia, mas também de descoberta

Depois de semanas de angústia e apreensão, nos vemos diante de um presidente eleito. O Brasil decidiu e a partir daí construiremos as relações sociais que são, afinal, o que define um país —relações sociais em um terreno geográfico e político comum— e a forma de compartilhá-lo.

Nessas semanas escutamos o sofrimento de nossos pacientes incrementado pelas disputas sociais que, embora sempre estejam lá, raramente estão de forma tão intrusiva e dramática. A política, pano de fundo de toda psicanálise, na qual o drama singular revela-se no social, adentrou os consultórios como causa de sofrimento incontornável.

Voluntários conversam com eleitores indecisos em praça do Rio sobre "política e democracia” na reta final da eleição
Voluntários conversam com eleitores indecisos em praça do Rio sobre "política e democracia” na reta final da eleição - Sergio Rangel/Folhapress

Mas não foi só isso o que aconteceu. Para fazer frente ao discurso de exclusão de negros, índios, mulheres, gays e pobres, novas alianças foram criadas.

Encontramos ou reencontramos pessoas, enquanto trabalhávamos na oposição ao discurso de ódio, em busca de uma saída apartidária, maior do que os interesses individuais. Pessoas que se posicionaram fortemente passando por cima de diferenças políticas antes intransponíveis, que se mostraram ínfimas diante de um perigo maior.

Abraçar desconhecidos, ouvir mensagens de solidariedade, trocar sorrisos cúmplices, cantar juntos nas ruas, lembrar nossa história recente foram alguns dos marcos desse momento de angústia e medo. Discutimos do que se trata a psicanálise e sua inserção no campo social, da qual emerge, sua luta perene contra as formas de autoritarismo e segregação dos sujeitos.

Nascer e viver no Brasil é sempre uma questão. O que será que sentem japoneses, franceses, mexicanos ao se reconhecerem como tais? Qual seria o sentimento de brasilidade? Quando viajo para o Norte do Brasil vejo com mais clareza nossa ascendência indígena, no Nordeste é nossa marca africana que se sobressai, ao Sul temos mais brancos, árabes e orientais e no centro nossas origens aparecem mais borradas, fruto de maior miscigenação. Grossas pinceladas da complexidade que nos funda e nos enriquece.

Mas, afinal, o que é ser brasileiro? Ter mania de tomar banho? Aproximar-se excessivamente dos outros ao falar? Não pedir licença, para não soar petulante? Ser hospitaleiro com estrangeiros, sem sê-lo, com conterrâneos migrantes? Ser espontâneo em público, causando vergonha alheia, em alguns momentos, e pura alegria, em outros? Ter gosto pela musicalidade? Achar que nada está doce o suficiente?

Cada um que responda por si, é claro.

Para mim é ter que se haver com diferenças sociais chocantes, se haver com povos que chegaram por diferentes razões aqui, eletivas ou não. Compartilhar o desejo de pertencer, ser reconhecido, viver com dignidade. Arrastar uma história sofrida, cujo medo de encarar causa efeitos nefastos. Mas não é disso mesmo que se trata uma análise?

O Brasil é uma imensidão continental, com um povo que precisa aprender a compartilhá-la com justiça e solidariedade. É também um país que se descobriu admirado por outros. As manifestações de apoio internacionais nesses dias nos mostraram que nossa reconhecida hospitalidade nos retorna em declarações de amor e apoio. O mundo se preocupa conosco e valoriza nossa complexidade racial e cultural. Como nos disse Mia Couto em vídeo calorosamente enviado, é preciso lembrar a canção: "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Por fim, aprendemos nesses dias a usar a rua para nos encontrarmos, caminhar, cantar e conversar em paz. Não abramos mão dessa recente e delicada conquista.

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