Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Vera Iaconelli

Posição política de um psicanalista

Não podemos compactuar com um discurso que repudie as diferenças

Declarações públicas contra a candidatura de Jair Bolsonaro feitas por instituições psicanalíticas têm gerado polêmica. Alguns se perguntam se caberia ao psicanalista declarar sua posição publicamente, por se tratar de um profissional que supostamente se absteria de emitir opiniões políticas.

Mas, afinal, qual a posição política de um psicanalista?

Para o psicanalista pouco importa em quem seu paciente vai votar, pois quer o paciente fale do Bolsonaro, do cachorro ou da sogra, ele só fala de si mesmo, em infinitas versões. O espaço da análise é criado justamente para propiciar uma espécie de "vácuo subjetivo" do analista e promover a subjetividade do paciente. Essa é a condição "sine qua non" para ajudarmos o analisante a se escutar. Sustentamos uma cena na qual ele pode contracenar consigo mesmo e descobrir suas motivações e desejos inconscientes. Trabalho difícil, fruto de anos de análise do analista, de supervisão e de estudo que nos permite manter aquilo que Freud chamou de posição abstinente.

Muito além de não se envolver amorosamente com o paciente, a abstinência é a negatividade que se cria para que o outro possa se manifestar. Exemplo banal: digamos que eu atrase 15 minutos para iniciar uma sessão. Um paciente me dirá que achou que eu não gostava de atendê-lo, por isso me demorava. Outro dirá que imaginou que eu gostava mais do paciente anterior, com quem eu teria ficado mais tempo. Outro, ainda, revelará a fantasia de que eu estaria lhe dando alta. Não me cabe responder a eles que eu estava no banheiro. Afinal, é nessa ausência de resposta que surge o mais importante: suas fantasias de rejeição, ciúmes, superioridade. Abstenho-me de me justificar, não por falta de educação ou arrogância, mas porque as questões pessoais do paciente estão em primeiro lugar sempre e devem ser escutadas com respeito e consideração.

O que se revela, quando o analista se abstém de ocupar o espaço da sessão, é aquilo que faz o paciente sofrer, mas que ele mesmo desconhece. Nesse ponto a ética do analista é não julgar e permitir que o paciente escolha o que fazer com o que descobre de si. A sessão trata menos do encontro entre paciente e analista do que do encontro do paciente consigo mesmo, sustentado pela abstinência do analista.

Se nosso trabalho se baseia no exercício diário dessa abstinência, como podemos vir a público repudiar um candidato e declarar nossa intenção de voto?

Existem diferenças entre o espaço da clínica e o espaço público. No primeiro, o profissional deve se abster de emitir opiniões, enquanto que, no outro, nem sempre ele pode se furtar a fazê-lo. Ambos os espaços são regidos pela mesma direção política: da ética do desejo, do direito à singularidade e do exercício da fala.

Isso significa que não podemos compactuar com qualquer forma de discurso social que repudie as diferenças individuais ou cerceie a palavra. Qualquer proposta política que propagandeie o uso do outro como bode expiatório daquilo que não queremos reconhecer em nós é antipsicanalítica e deve ser combatida como tal.

Em momentos históricos críticos, de ameaça à ordem democrática e opressão das minorias, são os textos de Freud que nos servem de alerta. "Psicologia das Massas e Análise do Eu" (1921), escrito entre guerras, é um marco dos estudos sobre nossa tendência ao autoritarismo. A psicanálise sempre se posicionou inequivocamente contra o fascismo e o assujeitamento, cabe aos psicanalistas estarem à altura dela hoje.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.