Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Vera Iaconelli

Nossos garotos

O Estado ceifa a infância triplamente com suas omissões

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A releitura de "Os Sertões" de Euclides da Cunha (1902), homenageado da Flip 2019, nunca foi tão necessária. De suas páginas arrebatadoras, cabe pinçar um trecho em especial. Nele, os soldados do governo, já quase no fim da vergonhosa batalha fratricida, se deparam com um "soldado" conhecedor e desenvolto no manuseio das armas, que não titubeia em responder que matara durante os combates, enquanto fuma um cigarro. Nada de especial, se não se tratasse de um combatente de nove anos de idade. Cunha dirá: "Aquela criança era, certo, um aleijão estupendo. Mas um ensinamento. Repontava, bandido feito, à tona da luta, tenso sobre os ombros pequeninos um legado formidável de erros. Nove anos de vida em que se adensavam três séculos de barbaria." O texto segue denunciando com palavras inesquecíveis a presença de um Estado que promove aquilo mesmo que diz combater. Afinal, uma sociedade na qual o cidadão não tem direito à infância fomenta a barbárie.

​Canudos é logo ali na periferia e seu tempo é agora. Cada vez que a periferia recebe --ao invés de escolas, creches, hospitais, saneamento básico, luz, segurança —o chumbo grosso da polícia e das milícias, crianças perdem a vida e a chance de ter uma infância. Pois o que é a infância se não o tempo em que familiares protegem os pequenos do mundo adulto? E como os pais podem protegê-las, quando eles mesmos estão em condições de violência e precariedade? Entre uma escola inacessível, com professores desprestigiados, e o glamour do crime, é fácil ver para quem estamos perdendo nossas crianças.

Mas periferia não é bandidagem. De lá saem os funcionários que trabalham em nossas casas, nas fábricas, nos atendem em shoppings, supermercados, farmácias, dirigem os transportes coletivos, carregam nosso lixo e correspondências, consertam a iluminação pública, fazem a segurança dos prédios. É entre nós que eles trabalham, para depois voltarem para casa sem iluminação, sem hospital, sem escola, sem lazer, sem condução.

Sim, é verdade que entre eles há bandidos que aterrorizam a todos.

Mas entre nós, que vivemos no "chantilly" da sociedade, não há?

Os bandidos que nos rodeiam não precisam utilizar armas. Mesmo porque, quando precisam fazê-lo, arregimentam milicianos no seu lugar, regiamente pagos com nosso dinheiro. A morte de Marielle Franco (PSOL) e as ameaças ao deputado federal Jean Willys (PSOL), que o obrigaram a renunciar ao cargo, são exemplares dessa lógica.

O cidadão de bem —nome do jornal do bispo Alma White e do reverendo Brandford Clarke que apoiava a Ku Klux Klan—, quando faz o mal, tem inúmeros advogados que o mantêm na impunidade. Exemplos abundam. Já do outro lado, temos o caso, só para citar essa semana, de Leonardo Nascimento, que foi preso por assassinato, após ser indicado por testemunhas, sem jamais ter estado no local do crime. Era o único negro na fila de reconhecimento. Faz parte dessa lógica a lei pela diminuição da maioridade penal, cujo efeito será a exploração de menores de 16 anos pelo crime organizado, numa regressão que pode chegar até os nove de anos de idade, como relatado.

O Estado, e seus aliciadores, ceifa a infância triplamente. Falta com sua obrigação de oferecer condições de uma vida digna ao cidadão, mantém impunes os que desviam o dinheiro público existente para esse fim e dá o tiro de misericórdia executando-o a queima roupa.

Esses crimes não são coisa de garoto e aguardam punição.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.