Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Pós-parto: céu ou inferno?

Acontecimentos terão efeitos distintos sobre sujeitos únicos

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Informo meus alunos que, para conhecer o imaginário atual sobre a maternidade, devem-se ler as conhecidas revistas nas quais filhos são chamados de herdeiros e mulheres juram encontrar o equilíbrio perfeito entre crianças, carreira e manequim 36 —ou morrer tentando.

Para fazer frente a tanta idealização, cujos efeitos são estranhamento, depressões e outros sintomas, foi necessário que a psicanálise denunciasse a crise que envolve o nascimento de um filho e a complexidade do puerpério. Como todo alerta, acabou por ser generalizado e incorrer na suposição oposta: todo pós-parto seria um horror.

Acontecimentos, como no caso do pós-parto, terão efeitos distintos sobre sujeitos únicos, com histórias, expectativas e momentos de vida diferentes
Acontecimentos, como no caso do pós-parto, terão efeitos distintos sobre sujeitos únicos, com histórias, expectativas e momentos de vida diferentes - Daniela Dijean/Divulgação

O pós-parto sempre foi envolto em apreensão e superstições porque as febres puerperais e outras complicações matavam mulheres e recém-nascidos de forma epidêmica. O resguardo da mulher e do bebê era uma questão de vida ou morte e, na falta de antibióticos e higiene adequada, apelava-se para rezas e ervas caseiras com a eficiência conhecida. Só a superstição nos cuidados com o umbigo já daria um livro.

O impacto do puerpério, em parte ligado à queda hormonal, em parte ao reconhecimento de que a vida nunca mais será a mesma, é um fato da vida humana --mas apenas muito recentemente se tornou um campo de guerra ideológico.

O vídeo de um parto numa comunidade tradicional do Nepal mostra uma parturiente fumando seu cigarrinho sossegada, imediatamente após a expulsão do bebê. A absoluta indiferença dessa mãe — enquanto o bebê é assistido pela parteira—  vista sob o ângulo do imaginário atual, poderia ser erroneamente considerada como distúrbio de vínculo. Pais e parturientes que aparecem nas redes sociais atravessados por emoções. minuciosamente registradas e devidamente postadas, dão a tônica do modelo de reação esperado hoje. Para quem se interessa em saber como se deu a construção da mentalidade atual, recomenda-se ler Elizabeth Badinter (1980), que causou fúria ao demonstrar o caráter econômico por trás do mito do amor materno instintual.

Do outro lado da história, algumas mães têm se perguntando como é possível que elas estejam se sentindo bem durante o puerpério, contra todas suas próprias expectativas. Olga e Joana, por exemplo, são duas bebês que nasceram faz pouco tempo em Berlim e em São Paulo, respectivamente. Olga é filha de brasileiros morando fora em função da bolsa de estudo da mãe —leia-se orçamento apertado e questões de migração. Joana é filha de um casal de jovens descolados, enfrentando o desafio de ficarem confinados para cuidar dela. Fora o incrível perrengue de dormir pouco, cuidar dia e noite de um ser que não sabe falar —mas sabe chorar!—  e as adaptações da amamentação, as duas famílias seguem com uma satisfação contagiante.

Revela-se aqui o efeito iatrogênico de se colocar luz sobre um fenômeno —as idealizações na maternidade pós século 17—: as generalizações. É nesse ponto que a psicanálise cumpre sua função de resgatar a singularidade. Acontecimentos, como no caso do pós-parto, terão efeitos distintos sobre sujeitos únicos, com histórias, expectativas e momentos de vida diferentes. Mas o que mais tem atrapalhado pais e mães tem sido a fantasia de felicidade a granel. Ela faz crer que as dificuldades da vida são erradicáveis; que se você não está feliz, deve estar fazendo algo errado e cria a impossibilidade de reconhecer nossos parcos momentos legais. Ah, e para quem não sabe, desculpe revelar, mas a "Ilha de Caras" nada mais é do que um cenário montado no meio do mar.

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