Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Entre quatro paredes

O que o caso Neymar/Najila nos revela?

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Está aberta a temporada de consulta à bola de cristal, palpites selvagens e opiniões contraproducentes para adivinhar o que se passou entre Neymar e Najila. E como funcionamos diante daquilo que não temos como saber? 

A psicanálise nos ensina que montamos fantasias inconscientes para preencher as lacunas do nosso saber. Elas são criadas para aplacar nossa angústia e são a base na qual se fundam nossas mais profundas crenças. A questão "por que ele/ela me deixou" pede uma resposta impossível. Quem deixa o outro talvez nunca venha inteiramente a saber o porquê de tê-lo feito.

Ainda assim, a pergunta tem, com certeza, uma resposta inconsciente na cabeça de quem foi deixado. Pode ser "porque há algo de errado comigo", "porque o amor não existe" ou qualquer outra crença que, de tão arraigada, costuma servir de resposta para quase tudo o que lhe acontece. 

Para completar o quadro, a fé inconsciente e inabalável na fantasia também tem por efeito criar aquilo mesmo que o sujeito pensa que lhe acontece por acaso. Escolher um companheiro/a "mala sem alça" pode servir para confirmar a hipótese de que todos são iguais, negando que o que se repete é a própria escolha. Enfim, círculo vicioso que a análise e outros chacoalhões existenciais podem nos ajudar a reconhecer: crenças inconscientes e arraigadas servem de resposta para tudo o que não suportamos não saber.

Dito isso, vale muito a pena ir recolhendo as pérolas que estão servindo de resposta para o fato de que a fechadura desse quarto não tinha olho e, se tinha, ainda não contou o que viu.

Comecemos pela ideia de que chamar a jovem de prostituta justificaria alguma coisa. Justificaria a ideia de que se trata de uma pessoa desqualificada ou de que o consentimento sexual já estaria dado de saída? 

A prostituição é profissão reconhecida no Brasil pelo Ministério do Trabalho desde 2002, não sendo considerada crime, salvo quando se trata de menor. Se a jovem estiver agindo de má-fé, não se pode usar o argumento de que o faria por ser prostituta, pois a considerar a quantidade de consumidores do serviço entre celebridades e milionários, a ética geral da classe parece estar comprovada. 

Se acreditamos que prostitutas/os recebem para fazer o que der e vier, incorremos em outro erro. Como outras profissões, a prostituição tem serviços a serem combinados como, por exemplo, o uso de preservativos, sexo anal, "golden shower", entre outros. Os consumidores do serviço sabem como funciona, portanto, caso ultrapassem os limites, o fazem por sua conta e risco. 

Outra pérola é a ideia de que uma mulher que entra no quarto de um homem desconhecido está à sua disposição, ou seja, que o consentimento dado de saída segue valendo o tempo que for conveniente para o homem, não sendo considerado a eventual  recusa da mulher. Indo além, supõem-se aqui que, uma vez iniciada uma relação sexual, homens seriam incapazes de controlar seus impulsos animais. Mas, de fato, os que agem assim devem ser punidos, não justificados.

O que fica claro com as respostas dadas ao caso é que acreditamos que o corpo da mulher está à mercê do homem, bastando para isso estar ao alcance de suas mãos. Para muito além do sexo sem consentimento, essa crença aparece nas esterilizações compulsórias, nas cesarianas para conveniência médica, nos palpites sobre a amamentação e parto, na ingerência sobre o aborto.

Não sabemos o que se passou entre os dois jovens, mas descortinamos, com as hipóteses levantadas, a mentalidade que subjaz aos milhares de estupros não notificados todos os dias em nosso país.

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