Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

'Sincericídio' Bolsonarista

Seríamos nós covardes e insinceros?

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Na nova série inglesa “Years and Years” (2019), vemos Emma Thompson interpretar Vivienne Rook, personagem-síntese dos políticos atuais, pesadelo de vários países do mundo. Sua ascensão se dá a partir de falas indecentes que provocam diferentes efeitos em ingleses atônitos.

Trata-se de candidata inexpressiva, que deveria ter suas pretensões políticas abortadas pela ignorância que demonstra durante os debates. Mas a lógica não é o forte entre humanos.

A personagem chama a atenção do público ao dizer que não dá “a mínima”, digamos assim (“I don’t give a shit”), para os refugiados.

O escândalo causado pela ultrajante frase tem o efeito desejado: tira o foco de sua incompetência para o cargo e faz com que todos queiram saber quem é essa mulher que tem a “coragem” de dizer o que pensa publicamente.

O desfecho dessa ficção é bem conhecido por nós: vence o pior. Com a diferença que aqui, na versão colonial, o candidato Bolsonaro nem se dignou a ir aos debates. Justificava a ausência com a facada que havia levado, enquanto dava entrevista para mídias parceiras no horário dos programas.

Dizer tudo o que vem à cabeça tem um efeito catártico sobre nós. Afinal, são anos de aprendizado para nos tornarmos educados uns com os outros. Para não desrespeitar, não magoar, mas também para não ser processado, não apanhar, não ser morto.

Anos de educação para evitar o pior tipo de interação social: a violência. O que cada um de nós pensa dos outros é de foro íntimo —e não costuma ser muito melhor do que Rook ou Bolsonaro revelam—, mas o que cada um de nós está autorizado a expressar publicamente é uma questão ética. Você pode falar o que quiser, na condição de assumir as sanções decorrentes.

Esse é o pacto que sustenta o laço social, e sem ele estamos perdidos. É só acompanhar os efeitos nefastos que falas violentas e injustas têm na escola, na família, no trabalho e no país. O que é o bullying senão a “coragem” de expressar o ódio ao outro livremente?

A luta contra o bullying não se baseia na pretensão de garantir a mudança de opiniões, mas em exigir que elas sejam devidamente guardadas para si. O “sincericídio” é o oposto da assertividade, pois esta última revela a capacidade de nos implicarmos nas opiniões que emitimos.

Frases como “Pergunta para as vítimas [dos presidiários decapitados] o que elas acharam” dizem pouco sobre os presidiários de Altamira e suas vítimas, mas muito sobre Jair Messias.

Não importa se as vítimas dos presidiários desejavam que eles fossem sumariamente mortos —certamente, algumas o desejavam. O que importa é que, entre nós e nossos desejos incestuosos e homicidas, existe o parco verniz da civilização, conquistado a duras penas.

Não podemos ter a fantasia de erradicar em nós mesmos nossa violência, pois ela é fruto da nossa dificuldade estrutural de lidar com a alteridade e com partes nossas que desconhecemos. Mas é imperativo que não imputemos ao outro nossas limitações.

A perversidade está em apresentar aquilo que é interditado como sendo uma virtude, o sadismo que nos habita como sinal de coragem e valor. A perversidade, contra a qual lutamos em nós mesmos, foi alçada à política de Estado.

É como se o valentão da escola —que, na verdade, é um covarde— se tornasse o diretor.

Quanto mais Bolsonaro manipula o pior em nós, mais revela sua intenção de tirar o foco de sua incompetência espetacular e sem precedentes. E de permanecer no poder, é claro.

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