A história de Arthur Fleck é apresentada no filme “Coringa” (2019) como um show de humilhação, doença mental, precariedade financeira, isolamento social, desencontros afetivos, enfim, “That’s life”, como canta Frank Sinatra.
Convivem, de um lado, a empatia no trato com a mãe, com as crianças, com os jovens que o espancam e, de outro, a fúria contida. Ele não se defende, mas vai chutar o lixo depois.
Não ter sua história contada com a dignidade merecida —ainda que seja de ter sobrevivido ao horror— o mantém à deriva, errático.
Seu corpo é desconjuntado, sua corrida é destrambelhada. Há um abismo entre o riso descontrolado e a alegria. Tudo é desencontro em sua vida: no corpo, na história, no amor.
Mas Arthur não destoa da paisagem deteriorada na qual sobrevive: invadida por ratos, suja, decadente, intolerante.
Ninguém dá a mínima para a assistência social, dirá a assistente social, que o ouve impotente. Ela, ele, todos ao redor estão desamparados.
A promessa de ajuda está projetada na família do magnata que, com o olho na prefeitura, informa que colocará ordem em Gotham City.
Mas Thomas Wayne, pai do morcego, se torna o alvo de manifestações maciças a partir do momento em que subestima o descontentamento que o cerca. O tecido social já esgarçou. As pessoas perderam a delicadeza, se queixa Arthur.
Ele deixa claro que sua vida vale menos do que sua morte, anunciando que a própria existência psíquica —não apenas suas condições de vida— está em questão. A resposta para seu dilema surge de um gesto inesperado: ele mata três jovens bem-sucedidos.
Arthur Fleck não tinha certeza sobre sua própria existência até matar essas três pessoas.
A solução do personagem nos remete para o fundamento da existência do nosso “eu”, que se constitui desde bebê no embate com o outro.
Reconhecemo-nos como sujeitos no momento em que reconhecemos o outro. Daí decorre o impulso de se medir com o outro, de ganhar dele, de destruí-lo, de controlá-lo.
As lutas por prestígio —que deflagram guerras mundiais— nada mais são do que a necessidade de reafirmar quem sou eu. Cabo de guerra que só acaba se um dos dois soltar a corda e arranjar algo melhor para fazer. Amor, de preferência.
O personagem, que só se sentiu existir a partir do triplo homicídio, cogita desde sempre se matar. Mas entre matar o outro ou se matar, ele escolhe ambos. Mata seu grande ídolo no mesmo instante em que se mata. Arthur já era, agora só tem o Coringa.
Ver o Coringa dando o troco diante de tanta opressão dá uma sensação de prazer inconfesso. O medo de que essa sensação se expressasse por meio de atos violentos fez com que a estreia do filme nos EUA fosse envolta em apreensão, traduzida no aumento do contingente policial.
Demonstra-se aí o atual curto-circuito afetivo: ao invés de fazer refletir —vocação maior da arte— sairíamos depois da sessão a matar uns aos outros. Há precedentes. O medo revela que chafurdamos na cultura do “bateu-levou”, do “excitou-estuprou”, do “almejou-roubou”, do “perguntou-respondeu sem pensar”. Como se o reflexo de luta e fuga fosse alçado à categoria de valor social.
Os pais do Coringa são nossa escolha pelo retorno à barbárie, da qual só emergimos a partir de um pacto de solidariedade.
Não se trata de ser bom, mas de assumir que entre mim e o outro —qualquer outro— se impõe o reconhecimento do desamparo comum de nossa condição humana.
Menção especial ao “amigo” que ofereceu uma arma para Arthur se defender dos bandidos. Péssima ideia.
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