Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Quem são os pais do Coringa?

Arthur Fleck não tinha certeza sobre sua própria existência até matar três pessoas

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A história de Arthur Fleck é apresentada no filme “Coringa” (2019) como um show de humilhação, doença mental, precariedade financeira, isolamento social, desencontros afetivos, enfim, “That’s life”, como canta Frank Sinatra. 

Convivem, de um lado, a empatia no trato com a mãe, com as crianças, com os jovens que o espancam e, de outro, a fúria contida. Ele não se defende, mas vai chutar o lixo depois.

Não ter sua história contada com a dignidade merecida —ainda que seja de ter sobrevivido ao horror— o mantém à deriva, errático.

Joaquin Phoenix em cena de "Coringa"
Joaquin Phoenix em cena de "Coringa" - IMDb

Seu corpo é desconjuntado, sua corrida é destrambelhada. Há um abismo entre o riso descontrolado e a alegria. Tudo é desencontro em sua vida: no corpo, na história, no amor.

Mas Arthur não destoa da paisagem deteriorada na qual sobrevive: invadida por ratos, suja, decadente, intolerante. 

Ninguém dá a mínima para a assistência social, dirá a assistente social, que o ouve impotente. Ela, ele, todos ao redor estão desamparados.

A promessa de ajuda está projetada na família do magnata que, com o olho na prefeitura, informa que colocará ordem em Gotham City.

Mas Thomas Wayne, pai do morcego, se torna o alvo de manifestações maciças a partir do momento em que subestima o descontentamento que o cerca. O tecido social já esgarçou. As pessoas perderam a delicadeza, se queixa Arthur.

Ele deixa claro que sua vida vale menos do que sua morte, anunciando que a própria existência psíquica —não apenas suas condições de vida— está em questão. A resposta para seu dilema surge de um gesto inesperado: ele mata três jovens bem-sucedidos.

Arthur Fleck não tinha certeza sobre sua própria existência até matar essas três pessoas. 
A solução do personagem nos remete para o fundamento da existência do nosso “eu”, que se constitui desde bebê no embate com o outro.

Reconhecemo-nos como sujeitos no momento em que reconhecemos o outro. Daí decorre o impulso de se medir com o outro, de ganhar dele, de destruí-lo, de controlá-lo.

As lutas por prestígio —que deflagram guerras mundiais— nada mais são do que a necessidade de reafirmar quem sou eu. Cabo de guerra que só acaba se um dos dois soltar a corda e arranjar algo melhor para fazer. Amor, de preferência.

O personagem, que só se sentiu existir a partir do triplo homicídio, cogita desde sempre se matar. Mas entre matar o outro ou se matar, ele escolhe ambos. Mata seu grande ídolo no mesmo instante em que se mata. Arthur já era, agora só tem o Coringa.

Ver o Coringa dando o troco diante de tanta opressão dá uma sensação de prazer inconfesso. O medo de que essa sensação se expressasse por meio de atos violentos fez com que a estreia do filme nos EUA fosse envolta em apreensão, traduzida no aumento do contingente policial.

Demonstra-se aí o atual curto-circuito afetivo: ao invés de fazer refletir —vocação maior da arte— sairíamos depois da sessão a matar uns aos outros. Há precedentes. O medo revela que chafurdamos na cultura do “bateu-levou”, do “excitou-estuprou”, do “almejou-roubou”, do “perguntou-respondeu sem pensar”. Como se o reflexo de luta e fuga fosse alçado à categoria de valor social.

Os pais do Coringa são nossa escolha pelo retorno à barbárie, da qual só emergimos a partir de um pacto de solidariedade.

Não se trata de ser bom, mas de assumir que entre mim e o outro —qualquer outro— se impõe o reconhecimento do desamparo comum de nossa condição humana.

Menção especial ao “amigo” que ofereceu uma arma para Arthur se defender dos bandidos. Péssima ideia.

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