Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Ainda há tempo para um milagre

Jesus sempre escandalizava no quesito livre arbítrio

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Embora acreditasse na existência de um Deus, meu pai nunca botou fé nas religiões, o que fez com que minha incursão no catolicismo não passasse do batismo. 

Ciente dos escândalos financeiros e sexuais que cercavam as igrejas, muito antes de serem denunciados pela mídia, ele costumava dizer que não nos preocupássemos em seguir cultos, pois “Jesus não era católico, evangélico, protestante ou similar”. A figura histórica de Jesus, no entanto, lhe era cara.

Minha cultura bíblica passa pela minissérie “Jesus de Nazaré”, de Franco Zeffirelli (1977) —eu sei, é piegas, mas não canso de revê-la. Adoro, especialmente a cena do centurião que intercede pela vida 
de um servo amado. 

Cena do especial de natal da Netflix 'A Primeira Tentação de Cristo', feita pelo grupo Porta dos Fundos
Cena do especial de natal da Netflix 'A Primeira Tentação de Cristo', feita pelo grupo Porta dos Fundos - Netflix/Divulgação

Ernest Borgnine, enrolado em sua roupa de soldado romano, se apresenta a Jesus pedindo que cure seu agregado a distância, posto que não se achava digno de recebê-lo em sua casa e que acreditava 
que a ordem de Jesus bastava. 

Ponto para o centurião, em quem Jesus diz ter encontrado a maior fé dentre o povo de Israel. O ponto alto é o fato do servo desenganado ser milagrosamente salvo pelas palavras do salvador. 

Ainda assim, ato contínuo, surgem as críticas ao inesperado gesto do nazareno. 

Nesse caso, vinham do fato de ele se propor a ir à casa de um romano, casa do opressor do povo de Israel, povo escolhido. Jesus sempre escandalizava no quesito livre arbítrio.

Como não me interesso por milagres de abrir mar, fazer pão virar peixe e outras maravilhas da mitologia religiosa, resta-me a emoção dos milagres da humanidade falível e tola. 

E, nesse caso, trata-se de um cidadão se dirigir a alguém —a quem supostamente não poderia— pedindo ajuda e, surpreendentemente recebê-la, desse mesmo que não deveria nem sequer lhe dirigir a palavra. 

O milagre que me emociona vem da ética e não da pirotecnia. O personagem lindamente encarnado por Robert Powell afirma que a fé do demandante é que curou o servo, devolvendo ao sujeito o poder que é inteiramente suposto ao filho de Deus.

Sem usar a religião como chicotinho, dizendo o que podemos ou não fazer, resta-nos o árduo trabalho de pensar com a própria cabeça, reconhecer que somos fracos e ainda assumir a total responsabilidade pelas bobagens que fazemos.

Das ideias e histórias atribuídas a Jesus, o que mais me interessa é a contrariedade que causava seu discurso, sempre baseado na ética do respeito ao outro, fosse por uma prostituta, pelo suposto 
inimigo, pelos excluídos. 

Talvez o maior milagre esteja no fato de um discurso tão revolucionário como esse ter sobrevivido aos séculos, embora não espante o fato de que não seja seguido em absoluto. 

O desenho de Laerte para Ilustríssima publicado neste último domingo (22), de um presépio feito de cartuchos de bala, resume tudo. 

“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago (1991), que lhe rendeu o pão que o diabo amassou da crítica religiosa, separa o discurso atribuído a Jesus de Nazaré do joio de um cristianismo oportunista, no qual se encontram as Guerras Santas, a Inquisição e outras atrocidades feitas em seu nome. 

Jesus é um personagem público e histórico, aberto a revisões da ciência e da arte. Nesse sentido, o “Especial de Natal Porta dos Fundos” é tão legítimo quanto a versão de Zeffirelli, gostem ou não.

Hoje é 24 de dezembro e, embora sejamos menos virtuosos do que Jesus parece ter sido, ainda há tempo para nosso milagre: sentarão centuriões e judeus à mesa para celebrar juntos a mensagem de tolerância e amor deste dia? Oxalá!

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