Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Ter ou não ter filhos?

Atire a primeira pedra quem nunca sonhou com o tempo antes dos filhos

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Cartola finaliza sua obra-prima “O Mundo É um Moinho” (1976) com os terríveis votos: “Preste atenção querida / Em cada amor tu herdarás só o cinismo / quando notares estás à beira do abismo / Abismo que cavastes com teus pés”.

Diz a lenda que essa estrofe —de dar inveja à Malévola da Bela Adormecida— teria sido uma advertência a sua filha adotiva Creusa, então com 16 anos.

Os “sweet sixteen” —idade de furar o dedo na roca— parecem ter abalado o gênio musical, cioso da filha adolescente. Que atire a primeira pedra quem nunca se viu desgostoso com a cria e sonhou com um longínquo antes. Antes de tanto trabalho, antes de tanta preocupação.

Vinícius de Moraes descreveu a equação sobre ter ou não filhos com a célebre frase: “Filhos, melhor não tê-los. Mas, se não os temos, como sabê-los?”.

“Ter ou não ter?”, eis a questão. Há os que respondam que sempre desejaram ter um bebê. Tanto mais complicado, porque o bebê é a primeira coisa que acaba, deixando alguns pais ressentidos pela dedicação e amor que despenderam em uma minúscula, ainda que crucial, fase.

Vai-se o bebê, fica a criança, que, é bom lembrar, também se espera que seja superada em pouco mais de uma década. E haja rebeldia adolescente para provar aos pais que o adulto está chegando. Reclamamos dos filhos nessa fase, mas esquecemos convenientemente da preocupação que causamos em nossos próprios pais.

“Ter um filho”, expressão banal, revela seu equívoco. Mesmo a criatura mais dependente entre os humanos, o bebê, fará saber aos pais que se trata de um sujeito único e não de um objeto à disposição dos caprichos do adulto.

A expressão “colocar um filho no mundo” soa dramática mas, pelo menos, é mais honesta. Colocamos um filho no mundo e o cercamos de amor, cuidado e atenção enquanto a vida nos lembra diuturnamente que somos apenas seus tutores.

Cada um que assume a encrenca de ter filhos deve responder no singular por que o faz. Nem que seja dizendo cinicamente que os gerou porque é isso que pessoas adultas fazem.

Outra resposta é ter filhos para que eles sejam ou tenham tudo o que não tivemos. Nesse caso, ignoramos que não temos controle sobre os perrengues que os aguardam, nem sobre o que transmitimos a eles genética e psiquicamente. Não há controle possível das transmissões inconscientes transgeracionais. 

Mas a resposta que nossa época mais tem apontado para essa escolha tem sido a de ter filhos para amá-los, sendo a primeira vez na história que filhos são projetos pessoais, de cunho majoritariamente afetivo.

Hoje podemos evitá-los com mais eficiência e eles mais atrapalham o estilo de vida contemporâneo do que ajudam, ou seja, passamos a ter que declarar o nosso desejo. Não vou repisar que se trata de um amor ancorado em um narcisismo descarado e, portanto, fadado à decepção e ao luto das idealizações.

A perda de um filho é impensável, o que torna a escolha por tê-los algo da dimensão de assumir que uma parte da nossa vida estará nas mãos de criaturas tão frágeis quanto audaciosas.

Mas é no desencontro entre o filho que queríamos ter/os pais que queríamos ser e a pessoa singular que criamos com nossos parcos recursos que pode surgir um amor digno do nome.

Ali, onde amamos corajosamente o que nos é estranho, desconfortável ou ameaçador, mas do qual não podemos prescindir, é que temos a chance de descobrir um sentido inesperado para a escolha de ter filhos: a oportunidade de reconhecer do que somos feitos.

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