Em setembro de 1918, Freud fez um discurso lendário no 5º Congresso Psicanalítico Internacional, em Budapeste, exortando os psicanalistas a assumirem seu compromisso com a saúde pública.
A Europa ainda vivia as atrocidades da 1ª Grande Guerra quando ele afirmou que a psicanálise, a exemplo dos demais tratamentos de saúde, deveria estar ao alcance da população gratuitamente.
A repercussão de sua fala insuflou o atendimento psicanalítico gratuito, que já estava na pauta dos psicanalistas.
Lembremos que nessa época o sofrimento psíquico dos combatentes era considerado covardia e falta de patriotismo.
Coube a Freud a conceituação das neuroses de guerra e a possibilidade de tratar os soldados pela análise, com resultados amplamente reconhecidos.
As clínicas se espalharam por várias capitais europeias e tiveram a participação de mulheres pioneiras como Helen Deutsch, Anna Freud, Hermine Hug-Hellmuth, Therese Benedek e muitas outras.
Graças à colossal pesquisa de Elizabeth Ann Danto, temos acesso à história minuciosamente documentada desse movimento, que floresceu até a chegada do nazismo ao poder.
História que permaneceu esquecida pelos herdeiros de Freud em função do exílio a que os envolvidos foram forçados e da necessidade de se livrarem da fama de comunistas.
Aliás, o termo comunista sempre volta como palavrão, quando a preocupação com as minorias —maioria numérica da população— é vergonhosamente confundida com coletivização da miséria.
Os anos 1920, chamados “anos loucos”, foram de grande ebulição artística com as composições de Schoenberg, a arquitetura de Gropius, o cinema de Eisenstein, a dança de Isadora Duncan impulsionando a modernidade.
O que a audiência de Freud em Budapeste não poderia imaginar era que em pouco mais de uma década enfrentariam Goebbels e Hitler. Tampouco nós brasileiros imaginávamos que enfrentaríamos, cem anos depois, um secretário da Cultura neles inspirado.
Aqui, foi necessária a reação imediata de toda a sociedade para nos livrarmos do exemplar tupiniquim da paranoia nazista que, por sua vez, deu lugar à histeria coletiva da “namoradinha do Brasil”.
O trauma pelas recentes trocas ministeriais, que têm sido da água para o vinagre, nos deixou com a política do menos pior. O que nos sustenta hoje no Brasil é a esperança de que os próximos anos desse governo-pesadelo passem logo e que a eles sobrevivamos.
E para lembrar porque a arte é tão temida por regimes autoritários vale assistir a “Parasita” de Bong Joon-ho (2019).
No que tange à impossibilidade dos miseráveis se inserirem no mercado de trabalho, a Coreia do Sul é nossa alma gêmea. A família do filme é trambiqueira, desonesta e faz qualquer picaretagem para conseguir, basicamente, trabalho.
Que nos sirva de inspiração, então, o livro de Danto, recém-traduzido para o português como “As Clínicas Públicas de Freud: Psicanálise e justiça social” (Perspectiva, 2019), cuja leitura reproduziu o arrebatamento do discurso de Freud sobre os jovens psicanalistas brasileiros —os que se sentem indignados com o recrudescimento da violência de Estado, com o mal disfarçado discurso nazista e com a precarização dos serviços públicos.
Para a psicanálise o homem está condenado à repetição —como constatamos nos fatos históricos— e só o ato ético singular é capaz de romper essa cadeia infernal.
O ato de Freud foi revelar que do inconsciente ninguém escapa e que, ao tentar fazê-lo, criamos os bodes expiatórios de ocasião. Qual é o nosso?
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