Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu

A primeira vez dos jovens

Nem os pais, nem o Estado têm poder de decidir sobre a primeira vez

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No documentário “A Terra é plana” (Netflix, 2018), um dos entrevistados argumenta que a Terra não gira, porque, como podemos observar, está tudo parado à nossa volta. Assim, também seguem os avestruzes de plantão com o argumento de que incutir a abstinência na cabeça das meninas é o melhor jeito de evitar a gravidez adolescente

Como o entrevistado do documentário, a lógica se faz pela percepção simples e pelo achismo  —com o agravante do preconceito de gênero habitual, que imputa à mulher a responsabilidade por uma gestação auto engendrada. 

A ciência, que teve o mérito de provar que a Terra é uma bola, também acumula pesquisas mostrando que a política de abstinência sexual não tem bons resultados, enquanto o acesso à educação sexual nas escolas e o acesso aos meios contraceptivos, sim. 

Damares Alves discursa no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra - Fabrice Coffrini/ AFP

Diante de comprovações científicas, devemos incrementar recursos para aumentar a eficácia da política educativa ou apostar na percepção do “sem sexo = sem bebês”?

Se seguirmos a irresponsável proposta do governo, abordar a questão sexual se resumirá a munir o jovem da instrução “não transe” e, só depois de alguma insistência, falar sobre o que interessa e oferecer-lhe recursos. 

Trata-se de ação comparável a enfrentar cáries proibindo o açúcar em vez de apostar na escovação, no uso de fio dental e nas visitas regulares ao dentista. Consumo criterioso é parte importante do tema, mas abstinência total é delírio autoritário. 

Abster-se —se funciona— retarda o problema, deixando o jovem à deriva, quando ele decide começar a vida sexual. Além disso, apostar na capacidade de persuasão para a abstinência como ferramenta principal é de uma pretensão assustadora. 

A preocupação com o início precoce da vida sexual, gravidezes indesejadas e a transmissão de doenças é compartilhada por todos, mas os métodos para lidar com o problema revelam um espectro que vai da ingenuidade de alguns à má-fé de quem diz se basear na ciência, mas se guia apenas por seus próprios preconceitos.

A ministra Damares acerta quando afirma que as meninas —ela ignora os meninos, óbvio— transam precocemente por pressão do grupo, por insegurança e para agradar. 

Ela esquece, no entanto, que quando o adulto as orienta a simplesmente se absterem, ele assume uma postura de autoridade que fere a autonomia e a autoconfiança que pretende promover. Nem pelo grupo, nem pelos pais, nem pelo Estado, o jovem precisa ser educado a refletir criticamente sobre sua relação com seu desejo, com seu corpo e com os outros e a assumir a responsabilidade sobre seus atos. 

Pais, professores e Estado não têm como decidir o momento em que o jovem iniciará a vida sexual, mas podem tentar oferecer melhores condições para quando o fizerem.

Meninos se comparam com modelos de filmes pornôs, nos quais adultos com pênis enormes transam com mulheres que simulam um gozo sem fim. 

Meninas se comparam com musas do photoshop, cujas imagens são cuidadosamente retocadas para dissimular imperfeições. As primeiras relações sexuais são fonte de preocupação para pais e filhos por motivos diferentes, mas igualmente justificáveis: gravidezes e doenças por um lado, desempenho e aceitação, por outro.

Informá-los, educá-los, escutar suas inseguranças, dar-lhes meios para se protegerem, oferecer perspectivas de estudo/trabalho que concorram com o projeto de ter filhos e interromper concepções indesejadas são as estratégias que comprovaram ter os melhores resultados. O resto é palpite infeliz.

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