Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Falem mal, mas falem de nós!

A crítica que poupa o crítico é fruto do cinismo e da alienação

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O historiador francês Jacques Dalarun se perguntava em “História das Mulheres no Ocidente” (Afrontamento, 1990): “Será pertinente designar uma sociedade como mais ou menos misógina enquanto não despontarem os sinais seguros de uma cultura que não o seja?”.

A mensagem é clara: antes de criticar com ares de superioridade pessoas e períodos históricos considerados preconceituosos, convém olhar para o próprio rabo. 

A metralhadora giratória da crítica produz a ilusão de que o crítico observa o mundo de um lugar isento, acima dos outros.

Truque mais velho que o mundo e, vejam só, ainda funciona! Com o dedo em riste, fica fácil não contar a si mesmo.

Faz parte da constituição humana defender-se do outro e Lacan insistirá que o que chamamos de Eu funda-se na paranoia.

O apresentador do telejornal "Bom Dia São Paulo", Rodrigo Bocardi
O apresentador do telejornal "Bom Dia São Paulo", Rodrigo Bocardi - 03.mai.2013 - Reinaldo Marques/Divulgação

Não nasceu o sujeito que não se defenda de seus pares —condição inescapável—, mas cada época carregará o mal-estar das relações sociais com suas próprias tintas, sendo as nossas a da violência contra a mulher, do racismo estrutural, do horror a pobre, da homo e da transfobia, do desprezo pelo imigrante. 

O apresentador do telejornal Rodrigo Bocardi (Globo) supôs que um jovem negro entrevistado era catador de bolas de tênis do clube Pinheiros porque não foi capaz de imaginar um negro como sócio de um clube da elite paulistana.

Ele é racista? Ele foi e pagará caro pelo registro público disso, mas daí para confundi-lo com pessoas que têm a convicção de que negros são inferiores e que não deveriam frequentar clubes de ricos há um erro crasso.

Acusá-lo rápido demais faz supor que quem acusa é livre de preconceito, defendê-lo rápido demais é incorrer na mesma ilusão de que haveria alguém não inserido no racismo estrutural.

Ele agiu de forma preconceituosa e seria legal aproveitar a oportunidade para, primeiro, assumi-lo publicamente e segundo, falar sobre nossa dificuldade de imaginar —e sonhar— o que vemos pouquíssimo: negros ricos e mulheres no poder. Fazer da crítica algo além —um gesto na direção da reflexão e mudança— é fundamental.

O quadrinista Leandro Assis faz um inventário de nossa sinistra relação cotidiana com o outro. Suas crônicas são altamente recomendáveis e nelas encontramos tanto o racista convicto —que luta para manter seu lugar de privilégio a todo custo e deve ser coibido— quanto o sujeito que se assusta e decepciona consigo mesmo ao descobrir-se preconceituoso.

Não convivo com machões, embora seja profundamente afetada por falas, atitudes e crimes de desconhecidos que se enquadram na categoria.

Na minha bolha, longe dos piores tipos, estarei livre da misoginia? Não, pois como nos lembra Dalarun, não existe sujeito livre de misoginia vivendo em uma cultura misógina e isso serve para mim também.

Um amigo, tentando defender-se da crítica de que estaria desprezando a opinião de uma colega por ela ser mulher, responde: mas eu não sou misógino!

Ele não é particularmente misógino, mas estava sendo. Boa oportunidade para abrir mão da postura defensiva e refletir, igualmente boa para acolher as desculpas e propor mudanças.

Nomear o mal-estar é fundamental para denunciá-lo em nós e nos outros, pois a única forma de deixar de ser preconceituoso é admitindo isso, dia após dia, cena após cena, infindavelmente.

A crítica que supõe que o crítico está acima do bem e do mal é fruto do cinismo e da alienação e é um instrumento poderoso para conservar o pior em nós.

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