Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

A casa 'terceirizada' caiu

No Brasil, as famílias estão sendo colocadas à prova

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Este artigo não ignora que 47% das famílias brasileiras são privadas de saneamento básico e do mínimo de privacidade para evitar que o vírus se alastre.

Tampouco deixa de levar em conta aquelas cujo afastamento do trabalho coloca sem qualquer fonte de renda ou sob risco de falência iminente.

Não dá para falar em famílias brasileiras como se se tratasse de um grupo homogêneo, submetido às mesmas intempéries diante da Covid-19.

Ainda temos as pessoas que moram sozinhas e temem adoecer sem apoio e as que estão se expondo ao vírus na frente médica, de limpeza, da segurança, do comércio, do jornalismo, entre outros.

O risco de contaminação afeta profundamente os familiares destes, que sofrem por si mesmos e pelos expostos.

Muitos são os dilemas, e os atendimentos têm revelado os mais diferentes sofrimentos, as mais inspiradoras descobertas ou a simples mesmice.

Dito isso, me atenho à questão da quarentena forçada que faz muitas famílias conviverem intensamente no espaço privado e raramente no espaço público.

Excesso de um lado e falta de outro criam uma combinação inédita para a maioria de nós. A questão psíquica é tão preocupante que o governador do estado de Nova York, Andrew Cuomo, fez um apelo para que os profissionais de saúde mental atendam online gratuitamente.

No Brasil, as iniciativas foram imediatas e esses serviços já estão disponíveis. Nosso país é conhecido pela casa “terceirizada”, ou seja, as famílias de classe média e alta pagam por todo serviço doméstico —afinal, temos uma legião de desempregados para contratar.

A crise expôs ainda mais a precariedade do trabalhador doméstico. Agora eles dependerão da ética e das condições materiais dos patrões para serem liberados com a garantia de continuar recebendo, principalmente as diaristas.

O entra e sai desses funcionários põe em risco a todos. Resta saber se os que não têm direito de escolha —que, em muitos casos, passaram a morar com os patrões—, serão cuidados por eles, caso venham a adoecer trabalhando.

Nas casas que liberaram os empregados, temos famílias entrando na área de serviço pela primeira vez e compartilhando o trabalho doméstico entre si.

São tarefas que as crianças só costumam conhecer quando viajam para intercâmbio no exterior e que parecem aceitáveis quando recebem o nome de “chores”.

É na hora da divisão do trabalho que aparece quem é quem na família. Quem cuida e quem é cuidado? Poderão nossas crianças e jovens, finalmente, deixar de ser o centro da casa para contribuir?

Não se trata de entreter as crianças sem cessar, mas de ajudá-las a suportarem o tédio e descobrirem sozinhas o que elas mesmas podem criar a partir daí. Ultrapassamos a fantasia de que estamos de férias.

Os casais verão como cada um lida com a experiência da quarentena: existe risco aumentado de drogadição, alcoolismo, depressão e outras expressões do sofrimento psíquico. É importante que fiquemos atentos uns aos outros, mas é preciso evitar apontar o dedo para a “roupa suja” alheia.

A escuta psicanalítica se guia pelo lapso, pelo sonho, pela falta. Nesse sentido, nos vemos confrontados a uma fratura imposta pelo real, que pode promover a escuta ou ser evitada com subterfúgios.

É de uma mudança de postura diante das relações domésticas e diante de nossa responsabilidade social que dependerá a sobrevivência das famílias. Principalmente daquelas 47% que não têm nem
sequer saneamento básico.

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