Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Dia das mulheres é dia de quê?

8 de março é dia de sair da jaula e lutar

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Paul B. Preciado é filósofo, escritor, curador e, acima de tudo, personalidade importante da cultura contemporânea.

É autor do “Manifesto Contrassexual” (2002), no qual aponta algumas armadilhas teóricas dos estudos de gênero que fizeram as discussões sobre o tema avançarem muito.

Em seu livro “Testo Junkie” (2008) —um misto de diário/carta, rigorosa pesquisa acadêmica e tese original— relata sua experiência com a autoadministração de testosterona para transitar para o gênero masculino.

O final, no qual se descobre com quem ele dialoga desde as primeiras páginas, é profundamente tocante, revelando uma qualidade literária insuspeita.

No dia internacional da Mulher, a passeata intitulada Por Nossas Vidas, Democracia e Direitos!
No dia internacional da Mulher, a passeata intitulada Por Nossas Vidas, Democracia e Direitos! - Eduardo Knapp - 08.mar.2020/Folhapress

Se Judith Butler —conhecida por suas posições pacifistas e democráticas— foi agredida covardemente no Brasil ao dar conferência abordando questões de gênero, que dirá esse homem trans?

Em novembro de 2019, na França, Preciado causou furor ao participar da 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana. Ele foi à fonte perguntar sobre a invisibilidade de psicanalistas trans e/ou homossexuais.

De fala contundente, mas doce, Paul B. —B de Beatriz, nome que mantém a ambiguidade de seu percurso de gênero— encarna um fato que insistimos em tentar ignorar: há mais gêneros do que a interpretação binária calcada nos órgãos genitais é capaz de imaginar.

Comparando-se ao macaco Pedro Vermelho do texto “Um Relatório para a Academia” (1917) de Franz Kafka, o filósofo se apresentou aos psicanalistas com uma existência tão incompreensível aos acadêmicos quanto a do símio do conto.

Sua provocação, com grandes doses de ironia, deixou a plateia da jornada perplexa, denunciando a dificuldade em assumir que existem diferentes formas de viver a relação com o corpo, com o desejo e com as convenções de gênero bem distantes da patologia.

Ao trazer a questão para dentro de uma reconhecida instituição psicanalítica, revela que ninguém está livre de preconceitos e devemos continuar vigilantes na luta contra eles.

Por outro lado, o próprio convite para que participasse do evento é a prova da busca incessante dos psicanalistas por enfrentar o tema.

Reproduzo um trecho de sua fala: “Falo-lhes, hoje, desde essa jaula elegida e desenhada, do homem trans, do corpo de gênero não binário.

Uma jaula política que é, em todo caso, melhor que a dos homens ou das mulheres, porque ao menos reconhece seu estatuto de jaula”. Aproveito a provocação para perguntar: e na jaula das mulheres, o que temos?

Metade da população mundial está sob o jugo da outra metade, seja na forma de violência explícita, seja na forma do paternalismo cerceador.

Trabalhamos gratuitamente como cuidadoras dos filhos, maridos, pais, sogros às expensas do nosso trabalho remunerado, no qual recebemos menos realizando as mesmas tarefas que os homens.

Quanto mais assumimos que “não é não” —sob um governo que promove o machismo— mais aumentam os casos de estupro e feminicídio.

Mulheres negras e, abaixo delas, as mulheres negras pobres e, mais aquém, mulheres trans negras pobres são o chão da pirâmide de vulnerabilidade social —sendo, muitas vezes, oprimidas por mulheres brancas.

O grande mérito do Dia Internacional das Mulheres em 2020 não é, nem de longe, a comemoração de uma pretensa feminilidade.

O mérito é de termos finalmente reconhecido que 8 de março não é dia de comemorar, é dia de sair da jaula e lutar, não importando qual seu gênero.

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