Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Estamos dormindo com o inimigo

Não caiam no conto do agressor arrependido

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Depois de mais de um mês de quarentena, já estamos aptos a responder, com conhecimento de causa, com quem gostaríamos de ir para uma ilha deserta.

Conflitos são inerentes aos laços sociais e à nossa relação com nós mesmo —isso está na conta—, mas é a forma mais ou menos honesta de encará-los que fará toda a diferença.

O que se espera dos sujeitos é que tenham a decência de se incluir no problema, assumindo sua parte nos desencontros e nos sofrimentos das relações afetivas e sociais.

Dói ouvir que estamos errados, mas quando os ânimos se acalmam, vale a famosa “dr” —pavor de uns, orgasmo de outros— para tentar renovar nossa aposta na relação.

O confinamento imposto pela quarentena exige doses de paciência, mas tolerância zero para violência doméstica
O confinamento imposto pela quarentena exige doses de paciência, mas tolerância zero para violência doméstica - stock.adobe.com

Pensemos no adolescente se vendo às voltas com o convívio forçado com os pais, no momento em que a vida lhe exige a separação dos corpos e da influência dos adultos.

Ou os idosos, que lutam tanto para serem tratados com dignidade, sendo vistos como crianças rebeldes ao saírem de casa, sem que ninguém na rua tenha como saber se o fazem por esporte radical ou necessidade.

O casal cujo casamento de fachada funcionava como um relógio, mas que perdeu o álibi do trabalho, da vida social e dos amantes.

Ou os recém-apaixonados atropelados por uma quarentena que os separou cedo demais ou que os uniu prematuramente, estragando o “timing” do encontro.

Os jovens que deram o grande passo de irem morar sozinhos, surpreendidos por uma solidão devastadora, bem diferente da esperada no início da vida.

Vale lembrar que poucos têm condições de escolher com quem passar esse período. Os desencontros de aspirações e os diferentes momentos de vida de cada um são difíceis de lidar quando se está confinado sob o mesmo teto.

Diante de tanta frustração, a regra de ouro é: conte até mil, depois dobre a meta. Isso não serve para os casos de franca violência doméstica, pois estes requerem a ação do Estado e da sociedade civil para serem inibidos e criminalizados.

O feminicídio dentro de casa duplicou desde o início da quarentena pela combinação de sujeitos violentos, abuso de álcool, perda de renda, mas também pela omissão dos cidadãos de bem.

A Defensoria disponibiliza um link de orientação sobre como agir frente a essa situação: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=3453.

A pandemia acirra ânimos, pois cria uma situação insólita. Nos abstemos de circular livremente —e perdemos muito com isso— em prol daqueles que morrerão caso precisem de um leito de UTI e não o tenham devido ao excesso de demanda. Evitamos, com isso, ter que escolher quem pode ou não morrer. Tampouco sabemos quem serão essas vítimas ou se seremos nós mesmos.

A coisa complica pelo fato de que nem todos que são a favor da quarentena podem se isolar e de que nem todos que podem se isolar o fazem, gerando acusações mútuas.

Às mulheres, rogo que não caiam no conto do agressor arrependido. Quando um sujeito tem um discurso violento e instável tende a piorar sob a pressão da quarentena. Tampouco achem-se merecedoras de qualquer forma de violência. Ninguém é. Denunciem, busquem ajuda, fujam do algoz.

Aos cidadãos, lembrem que quem defende a tortura, acredita que matar é alternativa ao diálogo e não aceita as liberdades individuais é o retrato acabado do agressor e do assassino potencial.

Não importa a desculpa esfarrapada que nosso algoz nos dá no dia seguinte de ter cometido seu crime, ele deverá ser responsabilizado.

Enfim, brasileiros, até quando dormiremos com o inimigo?!

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