Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Solidão, modo de usar

Para a dor inescapável, que remédio inventamos?

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A ordem é cada qual no seu quadrado, mas ficar em casa pode ser bom? As respostas variam. Das coberturas de alto padrão às palafitas sem água e esgoto —nas quais o poder público se nega a reconhecer que habitam cidadãos—, não há resposta única ou permanente.

Dias ruins, dias piores, dias quase bons.

Das quarentenas individuais às casas cheias, ter companhia evita a solidão? A ausência dela é pior? Com quem estamos ou deixamos de estar pode fazer toda a diferença, mas isolamento social não equivale à solidão.

Guimarães Rosa, em “Ave, Palavra”, nos diz: “Eu estou só. O gato está só. As árvores estão sós. Mas não o só da solidão: o só da solistência”. Da solidão da existência padecem fauna, flora e humanos, com a desvantagem de que os humanos sabem disso. Existimos como peixes, gatos e árvores, mas ao termos consciência disso, vivemos a “dor de existir”, como dirá Lacan.

Para essa dor inescapável, de nos sabermos falhos e finitos, que remédio inventamos?

Escrevo este artigo para leitores a quem desconheço, mas ao fazê-lo dou destino à minha “solistência”. Existem outros destinos, como laços de intimidade, reconhecimento social e amor.

Cada cultura e época terá sua marcas preponderantes, que nos afetarão a todos, embora de formas diferentes. Na nossa, o culto ao individualismo, os ideais de independência e autossuficiência caminham juntos com a sanha por popularidade, celebridade e influência. Estamos com o outro na condição de segui-lo ou ser seguido por ele. Atendemos a demandas em busca de aceitação, na contramão do desejo próprio. Os animais de estimação têm sido o paradigma da companhia perfeita, afinal, eles nos são fiéis e nunca discordam.

Outra marca de nossa época é o ideal de produtividade neoliberal, que extrapola o âmbito do trabalho —e de caráter autoescravizante—, contaminando o lazer e as atividades pessoais. O circuito ininterrupto de trabalho-lazer-relações é mantido à base de drogas lícitas ou ilícitas, tanto faz. As imagens nas redes sociais provam como nossa vida é produtiva de domingo a domingo. Só nos resta alternar esse ritmo desumano com períodos de paralisação alienada.

Para fazer frente a isso, ao preço de muito sofrimento, temos, por exemplo, os jovens eremitas da era da hiperconectividade, os hikikomori —termo cunhado por Tamaki Saito em seu livro “Isolamento Social: Uma adolescência sem fim” (1998). Esses jovens parecem não suportar as demandas sociais e se isolam voluntariamente —às vezes, durante anos—, para desespero de familiares e profissionais de saúde.

Não suportar as demandas excessivas é dica de que caímos na armadilha de tentar dar conta delas, de tentar respondê-las. Vemos o alívio que algumas pessoas sentem com o isolamento, usando a quarentena como desculpa para dizer alguns “nãos”, os quais não se atreviam a dizer.

Esse “vácuo” possibilita que se ponha em xeque casamento, trabalho, filhos, vida social, o que pode ser bem assustador para quem vivia fugindo de si. Respondendo incessantemente às demandas, sobrava pouco tempo para olharmos nossos desejos.

Se a pandemia nos deu o álibi social, por outro lado não resolveu o problema de convivermos conosco sem as distrações do mundo lá fora. É difícil ser boa companhia para si mesmo, quando não queremos ouvir o que desejamos de fato. A quarentena acabará, mas a questão da solidão continuará um tema humano fundamental.

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