Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Na torcida

Até onde vamos com as hashtags?

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Tivemos um fim de semana repleto de fortes imagens. Urge que reflitamos sobre o que nos invade de forma tão impactante. O instante de ver é, segundo Lacan, o primeiro e necessário momento de reconhecimento de algo que já estava lá, mas permanecia velado. No entanto, ele não basta, pois é necessário o tempo de compreender, condição para que o ato que dele decorra seja legítimo e não um gesto impensado. O trabalho de compreender é um dos antídotos para as fake news e para o sofrimento psíquico. Os gestos tresloucados do atual presidente revelam o curto-circuito que se instala quando a resposta vem de imediato, sem reflexão. Basicamente, a nação está acéfala e a cavalo --como pudemos ver no sábado--, enquanto o vírus segue a jato.

Entre as cenas que vimos, podemos começar pelo vídeo de uma mulher com um taco de beisebol na avenida Paulista sendo gentilmente orientada a parar de bater boca com o grupo de manifestantes pró-democracia. O policial apoia a mão em seu ombro, direcionando-a com educação para o sentido oposto ao dos manifestantes. A pessoa que grava a cena pergunta insistentemente ao policial qual teria sido o procedimento se a arma branca que a senhora ostentava estivesse nas mãos dos manifestantes das torcidas organizadas. Não obteve resposta, claro. Mas, afinal, por que raios alguém sairia de casa com um taco de beisebol para ir a uma manifestação?

Em outro vídeo, um rapaz negro grita contra o racismo --referindo-se ao uso da bandeira da Ucrânia pelos manifestantes bolsonaristas--, enquanto é hostilizado. Em seguida, ele para em silêncio com o punho levantado, marca da luta contra o racismo nos EUA desde os anos 1960. Sua imobilidade diante da câmera impediu bolsonaristas de irem além de empurrões e insultos grotescos. As vociferações materializam o horror e a crueldade pela fala --como nos aponta o psicanalista Mauro Mendes Dias, do Instituto Vox--, mas passam impunes sob a falsa alegação de que seriam exemplos de liberdade de expressão. Pura violência que o vídeo exemplifica e que causa pavor pelo risco à integridade física e sofrimento moral do rapaz, cuja palavra de ordem era contra o racismo, lembremos.

Outras cenas vieram das manifestações contra o racismo nos Estados Unidos, no qual o jornalismo brasileiro se esmerou. O gesto democrático dos norte-americanos foi valorizado, com direito a cenas de policiais se ajoelhando diante dos manifestantes e gente levando água e lanches gratuitos para dar suporte ao movimento. Os atos de vandalismo das noites e madrugadas foram devidamente criticados, sendo atribuídos em grande parte aos Antifa --ou infiltrados-- grupo que paira entre a legitimidade e o terrorismo, dependendo do ponto de vista. A preocupação com a transmissão do vírus nessas aglomerações ficou em segundo plano --a conta chegará daqui a duas semanas, provavelmente.

E aqui?

A união entre corintianos e palmeirenses --na maioria negros, pardos e periféricos-- não caiu nas graças do público paulistano, nem da polícia que deixou o taco de beisebol passar ileso, enquanto hostilizava a manifestação pró-democracia. A conta da contaminação? Para quem não tem condição de fazer isolamento, ela é permanente e implacável.

Nenhum gesto parece mais exemplar do que o de duas torcidas historicamente rivais se unindo contra o fascismo e pela democracia. Essa aliança é fruto do que se viu e compreendeu e o único ato que faz sentido hoje.

Mas não basta a torcida, as hashtags precisam descer às ruas.

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