Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu machismo

Quando nos descobrimos mulheres

Qual o modelo de poder que queremos professar

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Aos oito anos, minha filha teve o primeiro vislumbre de que o mundo era dos homens e, portanto, o que significava ter nascido menina. Não sei exatamente como essa ficha caiu, embora os exemplos dessa desigualdade de tratamento, expectativas e liberdades abundem à nossa volta desde sempre. Passou um ano se vestindo preferencialmente com roupas de garoto e na festa junina foi de caubói.

Ter nascido mulher era o primeiro furo na sua experiência de criança branca, de classe média alta. Caso fosse preta, pobre e periférica (os três “p” alvos de extermínio da polícia), seu choque seria infinitamente maior e as consequências, talvez, letais.

Mas ainda que pudesse ter sido muito pior, a descoberta não deixou de lhe trazer profundas marcas. Um dia me disse que não queria ter nascido menina, que meninos podiam tudo muito mais. Daí seguiu-se uma conversa sobre desafios, poder, feminilidade/masculinidade, coragem. Lembro que, não podendo desmenti-la, tive que pensar junto com ela que o desafio anima, forja, amadurece. Falava para mim mesma também, claro, criada para casar, ter filhos e não assustar o marido com estudos, carreira ou independência financeira.

Já faz algum tempo que psicanalistas —mulheres— denunciaram que a suposta “inveja do pênis” professada por Freud estava mais para inveja do poder dos homens, materializado na mínima diferença de seus corpos. O que eles têm que eu não tenho? Bingo! Deve ser essa parte que, afinal, é capaz de oferecer tanto prazer à eles e às mulheres.

Para enfrentar o desafio ao qual toda mulher é confrontada, primeiro precisamos distinguir se estamos falando de uma cultura na qual meninas se casam compulsoriamente aos 11 anos ou na qual podem votar, circular no espaço público, estudar, se divorciar, não ter filhos, abortar. Não conheço, no entanto, lugar no qual a circulação no espaço público seja idêntica entre homens e mulheres.

A ideia de que uma mulher andando sozinha na rua de madrugada está pedindo para ser estuprada parece ser uma máxima mundial. Dentro de cada cultura, também cabe distinguir classe social, etnia, transgeneridade e orientação sexual.

Minha filha queria saber como obter aquele poder cuja atribuição lhe escapava, ao qual ela respondeu imitando a forma como meninos se vestiam. Mas a grande questão é se seguiremos imitando o modelo viril masculino ou se “dias mulheres virão” —como Zélia Duncan escreveu há algum tempo.

A luta por direitos iguais é inquestionável (e inclui considerar as diferenças reprodutivas), mas o modelo de poder é controverso.

O modelo viril que nos assombra e que se vale da arrogância, da opressão e da violência não deveria servir de base para o feminismo. Trocar de lugar com homens mantendo seu discurso machista é ignorar que não se trata de corpos, mas do discurso aos quais corpos estão submetidos. Disso decorre que existam homens mais feministas do que algumas mulheres e negros mais racistas do que alguns brancos.

O lugar do feminino na psicanálise (que não se confunde com o da mulher) inclui aquilo que o machismo tenta abafar: o inconsciente, o não saber, o reconhecimento dos afetos, o erotismo, o sonho, a potência (no lugar da onipotência —fantasiada), a narratividade da experiência. Minha filha voltou a usar as roupas que sempre quis.

Nesse cabo de guerra, o lado que me interessa é o que solta a corda da disputa fálica e banca seu desejo singular perante homens e mulheres.

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