Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu machismo

Constrangimento feminista

A dificuldade da emancipação feminina não decorre da falta de poder

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Na série "The Crown" (Netflix), a misoginia de Margaret Thatcher, ex-primeira ministra da Inglaterra, é retratada de forma exemplar tanto na sua escolha por compor um ministério só de homens quanto na relação de menosprezo pela filha. Segundo a personagem, mulheres são muito emotivas e fracas para liderar, menos ela, óbvio, cuja postura inflexível e bélica lhe rendeu a alcunha de Dama de Ferro. O figurino antiquado e conservador compõem a cena, na qual Thatcher reitera o modelo feminino recatado e do lar, ainda que o lar fosse na 10 Downing Street.

A primeira-ministra britânica Margaret Thatcher em reunião do Partido Conservador em Blackpool em 1989
A primeira-ministra britânica Margaret Thatcher em reunião do Partido Conservador em Blackpool em 1989 - Johnny Eggitt - 10.out.89/AFP

A identificação com o discurso machista, no qual a sanha pelo poder tudo justifica, fez escola com essa figura quase caricata que, obviamente, não é caso isolado. Identificar-se com o opressor e negociar um lugar de proteção e prestígio a seu lado, reproduzindo suas falas e oprimindo os demais, é das razões pelas quais os discursos machistas e racistas saem da boca de mulheres e de pretos.

Tivemos exemplos acabados nesse estarrecedor Dia da Consciência Negra, como o do vice-presidente de ascendência indígena afirmando que não há racismo no Brasil. Aproveito para lembrar que o obrigatório "Peles Negras, Máscaras Brancas", do psiquiatra francês Franz Fanon, recebe edição caprichada pela editora Ubu lançada agora em novembro.

Este foi um ano repleto de lutas feministas que levaram milhares de homens e mulheres às ruas de Chile, Argentina e México. Em plena pandemia, as ruas da Polônia foram tomadas por jovens denunciando o cerco da Igreja Católica ao Estado e as novas restrições à contracepção e ao aborto. Tema caríssimo para nós brasileiros que assistimos o Estado perdendo a laicidade para figuras evangélicas execráveis, a começar pelo presidente. A luta delas é a nossa, pois o ponto zero da liberação feminina é o direito sobre seus próprios corpos, que passa pelo acesso à contracepção e ao aborto, controlados pelo Estado.

Pauta fundamental, mas escorregadia, de adesão problemática. Assumir o poder de decisão sobre vida e morte, restrito à pessoas nascidas com útero, pode ser angustiante. Deixar a decisão para outros é uma forma inconsciente de escapar de uma responsabilidade gigantesca. Muitos preferem deixar para Deus, familiares, médicos e legisladores, abstendo-se. Enquanto as próprias mulheres não assumirem o direito a inviolabilidade de seus corpos, teremos ministras como Damares nos guiando a passos largos em direção à república de Gilead, descrita por Margaret Atwood.

Outro ponto central da luta feminista é o trabalho doméstico não remunerado —ou mal remunerado—, que serve de esteio para a economia mundial e precisa ser enfrentado (sugiro o didático Economia do Cuidado, do Think Olga). Nesse caso, greves de mulheres, aos moldes do que tem sido feito desde os anos 1970, são fundamentais. Mas aqui também temos um campo no qual as relações afetivas com o outro gênero (pais, maridos, irmãos, filhos) embaralham o campo das reivindicações, em que a desigualdade estrutural é disfarçada pelos laços amorosos. Tivemos uma pequena amostra das máscaras caindo durante o isolamento, com o aumento do número de divórcios e da violência doméstica.

O constrangimento das mulheres diante das pautas feministas não é decorrente da sua falta de poder —isso é o que quer fazer crer o discurso machista—, mas da capitulação diante do grande poder que de fato têm, e que para os sujeitos é sempre assustador. Poder de desejar, de escolher, de ser reconhecido, a não ser confundido com o poder de oprimir seus iguais.

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