Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu beleza

Meninas que se cortam

Perseguidas pela imagem, jovens adoecem como nunca

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Recomendo para mulheres de todas as idades um tutorial enaltecendo o uso de filtros de imagem e outro explicando todas as etapas de um "spa day" embelezador. Acredito mesmo que deveriam ser apresentados nas escolas desde o ensino fundamental. Trata-se do vídeo-alçapão da talentosíssima Maria Bopp, na pele da Blogueirinha do Fim do Mundo.

Maria tornou-se internacionalmente conhecida por sua atuação no papel de Bruna Surfistinha na série da Fox Premium —ela conta que chegou a ser abordada nas ruas de Buenos Aires, antes da pandemia.

Jovem, branca, linda e loura, a atriz encarna o estreito e rígido ideal de beleza da cultura racista vigente em nossa época, mas se usa disso de forma excepcional. Os vídeos citados são especialmente importantes para falar como o empuxo a um certo padrão de belo incrementa o sofrimento das mulheres —homens não estão livre desse mal, mas de forma incomparável.

Enquanto ensina todas as etapas do cuidado de si, a atriz, aqui também no papel de roteirista, vai introduzindo as questões. Daí o "alçapão", que pega muita gente de surpresa, por exemplo, quando ela grita e chora de dor se depilando com cera, enquanto afirma como é gostoso "estar adequada aos padrões da pornografia".

Ideais de beleza sempre existiram e sempre foram causa de sofrimento daqueles que não se encaixam no padrão ou, ainda, dos que são explorados exatamente por se encaixarem demais. Do erudito "História da Beleza" de Umberto Eco (Record, 2004), passando pelo engajado "Mito da Beleza" de Naomi Wolf (Rocco, 1992), ao oportuno "História da Beleza no Brasil" de Denize Bernuzzi de Sant'anna (Contexto, 2014) muito se tem dito da função de controle e opressão das mulheres a partir do quesito beleza, incrementados por questões próprias de cada época e lugar.

Hoje estamos diante de uma geração de jovens que não saem da frente do espelho, menos para se admirar do que para esquadrinhar a aparência em busca de correções baseadas em modelos de harmonização facial —tão fake quanto implante de cabelo. Pesquisas revelam que essa mesma juventude foge do sexo e do encontro íntimo como o diabo da cruz.

A captura pelo imaginário é um dos grandes temas do processo de uma análise e requer que o sujeito faça uso de recursos simbólicos para melhor equacionar sua relação com a autoimagem. Apostando na falsa unidade que a imagem oferece, acabam se atrapalhando mais do que o previsto diante do caos ambulante que de fato somos.

O compartilhamento das experiências, o uso da narrativa e o recurso à palavra se mostram necessários para relativizar nossa avidez pelo ideal.

Mas são justamente esses recursos simbólicos que são eliminados no culto à virtualidade. Como nos diz o psicanalista Christian Dunker, "intimidade não é dividir nudes, é dividir incertezas".

Estamos diante da combinação bombástica entre as incertezas do crescimento, a histórica opressão estética das mulheres, a proliferação das imagens e a diminuição da oferta de recursos simbólicos para lidar com tudo isso.

Sendo assim, não é de espantar que a vivência da angústia, subtraída dos meios para se lidar com ela, é um dos fatores responsáveis pelas automutilações, transtornos alimentares e crises de ansiedade das jovens. Mesmo tutoriais que visam aumentar o amor próprio de meninas fora do padrão estético acabam por reforçar a confusão entre autoestima e autoimagem. Esperamos que mais blogueirinhas contribuam para o fim desse tipo de mundo.

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