Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Terça-feira de Cinzas

Ficamos em casa para fazer jus ao espírito do carnaval

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Quem gosta de dar festa, e é cidadão, deve lembrar com nostalgia da última vez na qual pôde usufruir de uma. Após aquele momento no qual você, ainda na cama, repassa os acontecimentos da véspera para se certificar de que não precisará pedir desculpas a ninguém, resta levantar e encarar as consequências.

Louça suja, mobília manchada, bitucas, chão encardido, resíduos humanos e algum eventual convidado esparramado no sofá fazem parte. Tirando o encontro dos sujeitos cuja chatice se tornou um estandarte, não há festa sem alguma bagunça. Nem as inocentes festas infantis fogem à regra.

Dito isso, pensemos no Carnaval, a festa para a qual todos estão compulsoriamente convidados e cuja sujeira e bagunça tanto podem incomodar.

Os jovens que veem o Carnaval tomar as ruas de São Paulo semanas antes da data oficial —que nem feriado é— e se prolongar por tantos outros fins de semana têm a falsa impressão de que sempre foi assim.

Vale lembrá-los que o primeiro cordão de Carnaval foi criado pelo líder negro Dionísio Barbosa em 1914 e se chamava cordão da Barra Funda, conhecido depois como Camisa Verde e Branco. Que esse senhor, cujo pai era ex-escravizado, fizesse jus ao nome do deus grego injeta uma graça a mais ao seu precioso legado.

Vale ouvir a entrevista e ver o ensaio fotográfico com Barbosa disponíveis no acervo do MIS.

O Carnaval de rua poderia ter crescido paulatinamente desde então, mas testemunhou, nos anos 1960, o investimento público se voltar para as escolas de sambas e a elite brasileira se aboletar nos clubes, deixando a rua cada vez mais vazia, bem ao gosto de tempos autoritários.

Óbvio que a puls(aç)ão carnavalesca nunca esmoreceu, mas a arrebatadora retomada do espaço público só se consolidou na virada dos anos 2000. Amigos cariocas, soteropolitanos e recifenses que me perdoem, mas na última —e fatídica— edição do evento, São Paulo amealhou o título de maior Carnaval de rua do país.

Que muitas pessoas abominem a festa entendo e respeito completamente, mas que não reconheçam seu valor cultural, histórico e político é lamentável e um tanto desonesto.

O Carnaval é o rolezinho da periferia que nem todos os seguranças de shopping do mundo seriam capazes de impedir. É a minúscula brecha no apartheid brasileiro, ainda que tente reproduzir nos blocos suas condições de segregação social.

No célebre livro “O Declínio do Homem Público” (Companhia das Letras, 1993), Richard Sennett destrincha o encolhimento do espaço comum, suas causas e efeitos na mentalidade contemporânea de tudo privatizar. A intuição pode nos levar a crer que nunca tornamos nossas vidas tão públicas como hoje, pautados que somos pelas redes sociais. Um olhar mais atento mostrará que o uso que se faz do espaço e do bem público ocorre às expensas do outro.

A circulação nas ruas, por exemplo, se dá com o mínimo de interação possível: seja porque estamos dentro dos carros —de preferência blindados—, porque fones e telas impedem que nossos olhares se cruzem, seja porque agimos como se estivéssemos na sala da nossa casa, ignorando os demais. Exceto no Carnaval, cuja graça é encontrar e celebrar junto.

Uma festa tão linda não pode ser rebaixada ao espaço irresponsável da transmissão de um vírus mortal. Que nesta Terça-Feira de Carnaval estejamos em casa ao invés de aglomerados é a prova de que reiteramos que esta é a festa de Dionísio e não de Tânatos. Ziriguidum.

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