Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Mulher, demita-se

Alguns elogios não deveriam ser feitos nem por nós mesmas

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A propaganda na qual a mulher acorda, dá o café pra criançada, prepara o lanche, leva para a escola, vai pra academia, sobe no salto, trabalha o dia todo, pega os filhos na escola, prepara o jantar, arruma a casa e senta no sofá para ver TV com o maridão ilustra bem o funcionamento maníaco contemporâneo. Mas, embora tudo o que sobe tenha que descer, nem sempre é fácil desligar no fim do dia, e os distúrbios do sono estão aí para prová-lo.

Esse funcionamento “bipolar” é marca registrada da nossa cultura, que tenta administrar a produtividade no limite do adoecimento. Isso serve para todos —homens e mulheres— que acreditam que dizer não à demanda de trabalho ou pessoal é sinal de fracasso.

A diferença, já sabemos, é que as mulheres acumulam funções: fazem o trabalho doméstico de graça, se ocupam dos familiares e ganham menos no mercado formal. A única coisa que mudou durante o isolamento é que elas fazem tudo isso de havaianas, a escola das crianças é na sala contígua e não há ajuda externa.

Em reportagem no jornal The Guardian, Natasha Walter volta ao tema do sofrimento das mulheres diante da pandemia.

Para as mulheres, trabalhar no limite do burnout tem sido a roleta-russa da vida contemporânea: a qualquer momento a coisa estoura na forma de adoecimento grave. Enquanto isso, seguimos colecionando elogios de chefes, maridos e filhos: insubstituíveis, incansáveis, multitarefa, guerreiras, poderosas.

É de conhecimento da psicanálise que o paciente só se mete a fazer análise quando o tênue equilíbrio entre o que ele perde com o sintoma —exaustão por não delegar— e o que ele ganha —considerar-se insubstituível— se desequilibra. Até o adoecimento pode servir de reconhecimento: ela se mata pela família!

O assunto fica mais espinhoso quando percebemos a tentativa de usar dados científicos para reforçar estereótipos e justificá-los. O mito da mulher multitarefa está aí para ilustrá-lo. Estudos têm sido realizados na tentativa de definir se a capacidade de ser multitarefa estaria associada ao gênero, pois esse é um argumento usado para justificar o acúmulo de funções femininas. Artigos publicados nos últimos anos chegam a interessantes conclusões, mas nenhuma delas corrobora a ideia de que a mulher teria uma habilidade inata superior nesse campo.

A própria ideia da capacidade de ser multitarefa é questionável e convém ao estilo de vida atual. No mundo da produtividade ideal, abriríamos tela após tela como um computador, sem que uma tarefa interferisse na outra. De fato, ninguém é multitarefa nesse nível. Conseguimos sobrepor ações na condição de que uma esteja automatizada —como dirigir, por exemplo— e a outra não exija muita atenção —como ouvir o rádio. Se o rádio for substituído por teclar no celular, os riscos são conhecidos e equivalem a dirigir embriagado. Ou seja, não fazemos bem duas coisas ao mesmo tempo, mas podemos aprender a alternar rapidamente, dando a impressão de simultaneidade. Tampouco conseguimos prestar atenção uns aos outros enquanto olhamos para o celular.

As mulheres estão pifando com a seguinte justificativa: se eu não fizer, ninguém faz. Provavelmente ninguém faria do jeito que ela faz, mas alternativas tendem a aparecer quando ela se ausenta por ter adoecido. Pense duas vezes antes de se identificar com um elogio que esconde uma corrente presa a uma bola de ferro. Principalmente se ele for feito por você mesma.

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