Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Feito tatuagem

A tênue e imprescindível linha que separa os filhos dos pais

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Eu tenho um hábito bobo de enviar para minhas filhas pequenos vídeos de bebês fazendo coisas fofas, bem comuns nos aplicativos disponíveis hoje. Elas me mandam outros tantos e assim imaginamos o sorriso umas das outras ao recebê-los. Um me chamou a atenção: a garotinha de uns três anos enchia a mochila, enquanto avisava a mãe que iria visitar a avó sozinha. A mãe, se fazendo de abandonada, respondeu que choraria. A criança com um sorriso delicioso, diz sem hesitar: “Pode chorar”!

Que uma criança afirme preferir estar longe de mãe/pai —e que mãe/pai possam sentir prazer com isso— soa adorável para quem, como eu, despreza convivência compulsória.

Daí a graça da criança que não tem dó de deixar a mãe sofrendo com sua ausência porque preferiu ficar com a avó, e a graça da mãe que não se sente tão preterida assim, o que sua sonora gargalhada demonstra.

young woman in black dress with butterfly tattoo on back
Sean David - stock.adobe.com

O superinvestimento dos pais nos filhos, que se inicia com a modernidade e vive o paroxismo na atual geração, se revela cada vez mais problemático para que os jovens encontrem formas de se separar deles. Diante de adultos frágeis, alguns escapam ao dilema evitando se perguntar sobre o próprio desejo. É como se a criança, intuindo a fragilidade da mãe diante de seu desejo, nem conseguisse formulá-lo para si, que dirá expressá-lo na brincadeira.

Um dos paradoxos da separação é que seu processo se dá em referência ao outro de quem tentamos nos separar. Ou seja, tentamos contrariá-lo para dizer que não somos como ele, mas, ao fazê-lo, provamos estar ligadíssimos ao que ele quer de nós. Algo como o adolescente que gasta um tempo enorme contrariando os pais, ao invés de formular algo verdadeiramente próprio. Muitos pais se exasperam na tentativa de convencê-lo, ao invés de sustentar a diferença.

Eu fiz um combinado com minhas filhas de que elas só poderiam fazer tatuagem ou outras modificações permanentes no corpo a partir dos 18 anos. Proibições do uso do próprio corpo são fundamentais, pois a educação se baseia justamente em ensinar onde, como, quando e o quê se pode fazer com o nosso corpo e do outro em cada sociedade. Passamos anos ensinando a não colocar o dedo no nariz e nos genitais em público, comer de boca fechada, sentar à mesa, vestir-se adequadamente para cada ocasião, tomar banho, escovar dentes etc… Mas a violência civilizatória e necessária só cumprirá sua medida correta na condição de os adultos se retirarem no momento oportuno. Piera Aulagnier (Imago, 1979) resume assim: “A criança não pode, a não ser ao preço de sua vida, recusar-se a comer, dormir e defecar por muito tempo; mas ela pode tentar preservar um espaço solitário e autônomo, onde possa pensar o que a mãe não sabe ou não gostaria que ela pensasse”.

Eis que minha filha faz uma tatuagem, apenas uma linha, nada demais. Uma linha preta que sai da ponta do seu queixo e desce até osso esterno, dividindo seu corpo ao meio.

De todos os arabescos, animais imaginários, símbolos do zodíaco, frases lacradoras e nomes de amores que ela poderia ter tatuado —que provavelmente teriam me desagradado de qualquer forma—, foi essa linha que me impactou.

Dali, como mãe, eu nunca mais poderia ultrapassar, nem com o olhar.

Tatuagens não dizem nada sobre quem as faz —da aventureira à dona de casa, passando pelo presidiário e o pastor evangélico, quase todo mundo tem uma, depois que a moda pegou. Mas que cada um possa dizer algo com a sua tatuagem é outra coisa.

A da minha filha me diz: “Pode chorar”!

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