Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

A tragédia está em curso

Há centenas de milhares de vidas a serem salvas

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Não estamos diante do trágico acidente de avião que matou o time de futebol chapecoense, do terrível incêndio da boate Kiss, nem da impensável ruptura da barragem de Brumadinho. E não pelo fato de envolverem números infinitamente menores do que os da pandemia —porque cada morte conta—, mas por estarmos vivendo uma tragédia ainda em curso.

A casa está em chamas e há milhares de pessoas dentro, esperando para serem salvas. Lamentar a perda de 500 mil vidas é tão necessário quanto atentar para o fato de que a contagem continua.

O altíssimo platô de mortes não dá mostras de arrefecer, revelando que perderemos ainda muitos entes queridos para o descaso. Centenas de milhares de conhecidos, amigos, maridos, filhos, irmãos, que permaneceriam vivos se tomássemos a gestão dessa crise nas mãos, terão sucumbido à pandemia até o final deste ano, desnecessariamente.

Mais de 90 mil pessoas, segundo o epidemiologista Pedro Hallal —não estão mais entre nós porque suas vacinas não foram compradas quando poderiam ter sido.

E nem se trata só das vacinas, cuja oportunidade de aquisição foi perdida —repito—, mas também do afrouxamento da exigência do uso da máscara, das aglomerações incentivadas, da propaganda de medicação nociva, da logística aparvalhada e inoperante na distribuição de recursos financeiros e materiais —que matam de fome, suicídios e outras doenças.

Isso nós já sabemos, e está aí a CPI da Covid para prová-lo, ao mesmo tempo em que mantém o forno aquecido para assar a pizza que dela, provavelmente, sairá.

Tem-se usado a expressão pulsão de morte no afã de encontrar palavras para nomear a ação devastadora da necropolítica, termo criado por Achille Mbembe em 2003. Mas seu uso faz crer na separação entre bons e maus, como se vivêssemos nos quadrinhos da Marvel. Quis a natureza humana que a coisa não fosse tão simples assim. Para Lacan, a partir da reformulação freudiana de 1920, a pulsão de morte é a pulsão por excelência, sendo que as demais —de vida, de conservação— seriam parte dela. Nem tudo é Eros, pois precisamos romper antigas formas, por vezes destruir o que não serve mais, finalizar. Então, o problema não é que haja pulsão de morte —incontornável que nos habita a todos—, mas que ela perca sua relação dialética com a vida e com as forças de conservação.

O que vemos agora é, justamente, a ruptura dessa dialética, criando o paradoxo do prazer na violência e na destruição, o engajamento na política da morte de alguns para o gozo de outros. É a morte que se fez erotizar. Deixar morrer por ação e omissão, assistindo de camarote. Como se o sujeito não encontrasse nos laços amorosos uma fonte de prazer suficiente, restando destruir tudo o que vir pela frente e se deleitando com isso.

Não nos enganemos, a necropolítica bolsonarista, com suas diretrizes econômicas que visam desamparar a maioria da população, não precisava de um vírus para cumprir a promessa de matar. Sejam os 30 mil que teriam faltado matar na ditadura ou os opositores políticos tidos como petralhas, sejam os bandidos pré-julgados e condenados à morte antes da prisão ou as minorias. O vírus foi só o componente surpresa que possibilitou a tempestade perfeita entre o desejo de matar alguns e as possibilidades de fazê-lo, dentro da lógica da necropolítica.

É possível que em algum futuro tenhamos o prazer de ver os responsáveis por essa desgraça sendo exemplarmente punidos. Mas não salvaremos nenhuma vida esperando por isso. Tampouco nos livraremos da responsabilidade por nossa omissão histórica.

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