Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

O miserê humano

Do sujeito analisado às pequenas virtudes

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Quem já ouviu a expressão fulano é analisado? Curiosa, pois faz supor que a análise seja algo que se dá no passado e que serviria de adjetivo para alguém. Embora Lacan oriente as análises em direção ao seu fim, é um término que implica um recomeço. Trata-se de arcar de forma radical com o próprio inconsciente, agora livre das falsas premissas que nos alienam e desresponsabilizam. Uma vez que o inconsciente é perene e nunca cessa de produzir efeitos, o fim de uma análise diz respeito a uma nova posição ética em relação ao pior e ao melhor em nós mesmos.

Algo como “aceita que dói menos”, que chamei de assumir o miserê humano. Fui advertida do risco de parecer hobbesiana, ou seja, risco de interpretar a humanidade como incorrigível, a partir dos valores que a modernidade martelou em nossas cabeças e usou para justificar o “cada um por si” que nos faz padecer desgraçadamente. Mantra do self-made man que se alavanca às expensas de um outro considerado inferior, interpretação darwinista que finge ignorar a história e a linguagem.

Davi Kopenawa Yanomami - Falas da Terra
Davi Kopenawa é um dos principais líderes do povo yanomami - Divulgação

No entanto, o miserê aqui vai na direção contrária, pois sugere que, se estivermos menos capturados pela empáfia de nossa própria imagem, teremos muito a ganhar, incluindo menos violência contra si mesmo e contra os outros. Não é nada fácil sustentar essa posição diante do narcisismo inflacionado pelas promessas capitalistas, pela ideia de empresário de si mesmo —aberração neoliberal, também conhecida como uberização— e pela multiplicação da nossa autoimagem no mundo virtual.

Nessa perspectiva, fui ler “A Queda do Céu” (2015) de Davi Kopenawa e Bruce Albert, com prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, ótima indicação do colega Marcelo Checchia. São 730 páginas impossíveis de largar, marco da literatura etnológica desde “Tristes Trópicos” (1955) de Claude Lévi-Strauss.

O livro relata a cultura yanomami, sua lógica solidária, de trocas permanentes e contrária à acumulação de bens. Não se trata de romantizar relações humanas livres de egoísmo ou qualquer fantasia de retorno ao paraíso perdido. São povos que se vingavam entre si de forma quase sistemática, diante de morte por ataque ou supostos feitiços. Mas Kopenawa traz a questão que interessa aqui numa frase lapidar: “brancos são engenhosos, mas não têm sabedoria”.

A destruição do planeta que habitamos e do qual dependemos inteiramente para viver é prova suficiente da radical falta de sabedoria. Cortamos o tronco no qual estamos sentados no alto da árvore, sob a falsa alegação de que o fazemos para sobreviver. O monstruoso falo branco que ascendeu aos céus levando o bilionário Jeff Bezos é o ícone supremo da engenhosidade dos brancos idiotas —mesmo quando têm outras cores de pele.

Mas nossa história não é toda feita de imprestáveis. Recebi “As Pequenas Virtudes” (2020) de Natalia Ginzburg, gentilmente enviado por Matinas Suzuki, como lembrete de que a natureza humana não está dada a priori, pois é inseparável da história, da linguagem e da ética de cada um.

Nascida em Palermo em 1916, Ginzburg discorre sobre o que seria desejável transmitir aos filhos na crônica que dá nome ao livro. Tendo vivido o horror da guerra, a fuga com os pequenos passando frio e fome, a morte do marido torturado na prisão, ela contrapõe as pequenas virtudes às grandes virtudes.

Preocupada em transmitir o amor à vida, o desapego e a generosidade, o respeito ao tempo de cada um, incutir justiça sem negar que o mundo é injusto, Natalia faz ressoar a fala de Kopenawa. Brancos são engenhosos, mas não têm sabedoria —ainda assim, como diria Lacan, nem todos.

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