Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Vale a pena defender a família?

Dependendo do que for, melhor não

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É para ela que voltamos quando as coisas vão mal, é com ela que nos ressentimos quando não podemos voltar. A família é nossa encrenca fundante, sobre a qual nos queixamos em divãs, livros, filmes…, enfim, não há produção humana que não tenha nela algum lastro, seja pelo bem, seja pelo mal que causou. Para a psicanálise, a família é o núcleo duro irredutível para nos constituirmos subjetivamente.

Foi-se o tempo no qual era confundida com papai, mamãe e filhinho. Desde Lacan, o Édipo deixou de ser o mito heteronormativo que convinha à sociedade vitoriana e se tornou uma estrutura vazia, cujos elementos podem variar, desde que suas funções sejam mantidas. Funções aqui tampouco dizem respeito a quem leva ao médico ou coloca para dormir, mas aquelas fundamentais para que um novo sujeito encontre sua posição ética no mundo. Para resumir: papai-papai, mamãe-mamãe, pai e mãe solteiros e cuidadores estão valendo.

Em “Nota Sobre a Criança” (1969) endereçada a Jenny Aubry, Lacan lembra que a família conjugal resistiu à evolução das sociedades. Não considero que se trate de “evolução”, mas as transformações sociais nunca prescindem daqueles que se ocupam das novas gerações. “Todo mundo foi criança”, dirá lindamente Arnaldo Antunes, e todas as crianças precisam de responsáveis moral e afetivamente implicados, dirá a psicanálise.

Famílias são também estruturas de poder e manutenção de privilégios, e bulir com o modelo vigente num dado momento histórico é colocar a mão em cumbuca. Em nossa época a família se divide entre a miragem e o palpável. A miragem conhecemos: um casal cis e heterossexual branco de classe média alta cria um casal de filhos, cis e heterossexuais. O pai provê financeiramente e “ajuda” em casa, a mãe trabalha fora, mas é a responsável pelos filhos e pelo funcionamento doméstico. Na vida real, no entanto, somos criados por avós, mães solo, em instituições e toda combinação conjugal possível de gêneros e orientações sexuais. Presa à miragem que não corresponde à experiência, a família vive a negação de si mesma, envergonhada de sua condição real, em falta com o modelo mais afeito aos anos 1950.

“Cidadãos de bem” são tão ciosos dessa imagem que a defendem a pauladas. Se juntarmos a violência contra a mulher, os feminicídios, o abuso —sexual ou não— de crianças e a negligência aos idosos teremos números astronômicos. A família que a extrema direita diz defender é uma das causas de tanto sofrimento.

Em “O Fim de Eddy”, Édouard Louis (Planeta, 2018) conta sua trajetória de criança nascida com “ares” efeminados em um vilarejo ao norte da França. Cidade pobre, cuja economia gira em torno da fábrica, para a qual todos os homens jovens se dirigem ao final da curta vida escolar. As meninas, por sua vez, engravidam no mesmo período que saem da escola, compondo famílias formadas por sujeitos massacrados pelas condições sociais, frustrados em seus sonhos. Nesse cenário tão conhecido, a masculinidade é confundida com violência e o estoicismo diante das brutais condições de trabalho.

No retrato cruel e brilhante que Louis faz de sua infância, a denúncia da violência social e da familiar se misturam. Mas não nos enganemos, a violência familiar atravessa todos os níveis sociais.

A única defesa da família que faz algum sentido é aquela na qual lhe são oferecidas condições materiais de sua existência —políticas públicas— e respeito absoluto à sua diversidade. Caso contrário, é só uma familícia a mais.

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